Uma árvore cresce entre os dormentes da Ferrovia Norte-Sul. A planta avança bem. O capim também é promissor e começa a encobrir os trilhos. Aos poucos, a vegetação investe sobre a malha da ferrovia, mas não encobre a profusão de problemas em que se transformou o mais importante projeto ferroviário do país.
O trecho de 855 quilômetros da Norte-Sul, que liga a cidade de Palmas (TO) à Anápolis (GO), teve suas obras retomadas em 2007 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de passar 20 anos no limbo durante os governos anteriores.
Lula sacou R$ 4,2 bilhões dos cofres públicos e depositou na estatal Valec, que prometia entregar todo o traçado até outubro de 2010. Até hoje, nenhum trem passou pelo trecho.
No caminho da Norte-Sul, o que se viu foi um festival de contratos aditivados por até 17 vezes, projetos de engenharia deficientes, casos frequentes de superfaturamento e obras mal executadas, uma farra que, em 2011, levou a Norte-Sul para as páginas policiais.
O Valor visitou alguns trechos da ferrovia que foram minados por esse entrevero. Em Anápolis, um túnel de 360 metros de extensão foi entregue, mas a malha de ferro que deveria passar por ele, não.
Ficou para trás um ramal de aproximadamente 7 km para ligar a linha até o porto seco de Anápolis. Hoje, na prática, o trecho liga nada a coisa nenhuma.
Os sinais do tempo começam a surgir. Nos taludes de concreto que sustentam a entrada e a saída do túnel já é possível ver rachaduras causadas por plantas e infiltrações das chuvas.
A cerca de 100 km dali, no município de Jaraguá, o traçado da Norte-Sul previa a instalação de um pátio logístico, local que seria usado para o transbordo da carga.
O que existe é um acesso por terra, sem nenhum tipo de instalação. Donos de chácaras já cercaram a linha da ferrovia de um lado a outro, com arame farpado, para delimitar a área de pastagem de gado.
Nos dormentes instalados no trecho, mais um flagrante da falta de planejamento. Até determinado ponto dos trilhos, as peças de concreto instaladas possuem presilhas de ferro que seriam usadas para prender uma terceira linha dos lingotes de aço.
Esse recurso permitiria o tráfego de trens com diferentes bitolas. Acontece que, no metro seguinte, foram instalados dormentes simples e sem essas presilhas, ou seja, só um tipo de composição pode passar por ali.
A realidade desse trecho da Norte-Sul está bem distante daquela que se vê nos balanços oficiais da Valec. Nos papel, todos os contratos com as empreiteiras foram concluídos e muitos trechos são dados como 100% entregues pela estatal.
Apesar de uma parte significativa da obra estar contaminada por problemas estruturais – sem contar etapas não cumpridas -, a execução financeira desses contratos já chega a 98%, um índice que, teoricamente, deveria indicar que o empreendimento está praticamente pronto. Longe disso.
O Tribunal de Contas da União (TCU) acaba de fazer uma vistoria no traçado da Norte-Sul entre Anápolis e Uruaçu. Achou 280 km de problemas.
A conclusão dos auditores é de que as obras entregues até agora “não configuram um produto pronto face à dilapidação promovida no escopo original do trecho”.
A análise aponta que, mesmo se forem desconsiderados os erros que só afetarão a ferrovia ao longo do tempo – como deficiências provocadas pela falta de drenagem, aterros mal construídos e ausência de proteção vegetal – ainda há um trecho de 88 km de malha sem acabamento final na superestrutura dos trilhos, além de um desvio de cruzamento e um corte de 840 metros de traçado que não foram executados. Outros quatro pátios precisam sair do papel, além dos 7 km de trilhos que levam até o porto seco de Anápolis.
Como já ocorreu em auditorias anteriores, o TCU voltou a encontrar superfaturamento – desta vez, de R$ 27 milhões – e uma infinidade de materiais estocados inadequadamente ao longo do traçado.
“A descrição detalhada da situação de cada lote indica que as obras estão longe de serem entregues de forma que atinjam a finalidade a que se destinam”, disse o ministro relator do processo no TCU, Aroldo Cedraz, após analisar o relatório.
No ano passado, a Valec chegou a fazer um levantamento detalhado da situação entre Palmas e Anápolis. Sua conclusão foi alarmante: pelo menos 210 km de extensão já construídos – 25% do trecho analisado – teriam que passar por intervenções.
A Norte-Sul é uma obra crucial para viabilizar o bilionário pacote de concessões de ferrovias que o governo pretende leiloar no segundo semestre. A maior parte dos 12 trechos que serão oferecidos à iniciativa privada está diretamente ligada a seu traçado e depende dele para cortar o país por todos os lados.
No ramal de Anápolis, por exemplo, a Norte-Sul vai se conectar à malha da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), uma rede com mais de 8 mil km de extensão, que atravessa Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Sergipe, Goiás, Bahia, São Paulo e o Distrito Federal. A questão é saber quando, de fato, essa malha fica pronta.
Lançada durante o governo do então presidente José Sarney, a Norte-Sul atravessou duas décadas de abandono e passou por dois governos de Fernando Henrique Cardoso tendo avançado ínfimos 215 km. Em 2007, com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o projeto foi retomado por Lula.
Naquele ano, a mineradora Vale pagou R$ 1,4 bilhão para ter exclusividade na operação de um trecho de 719 km, entre os municípios de Açailândia (MA) – onde se conecta à Estrada de Ferro Carajás – e Palmas. Esse traçado foi entregue e hoje é utilizado pela empresa.
O plano de concessão retirou da Valec a meta de levar a rede de Açailândia até o porto de Vila do Conde, em Barcarena (PA).
Agora, essa parte ficará à cargo do investidor privado. Na Valec, permanece a missão de estender a malha até Estrela D’Oeste (SP).
A linha de 680 km tem obras em andamento. Até o ano passado, seu prazo de conclusão era julho de 2014. Com 2.244 km de extensão e orçamento total de US$ 6,7 bilhões estimado pelo Ministério da Fazenda, a Norte-Sul é hoje a sétima obra de transporte mais cara do mundo.
Fonte: Valor Econômico, Por André Borges
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