Em evento na USP, engenheiro Lúcio Gregori explica como a passagem gratuita é possível e sua necessidade para a conquista da liberdade dos cidadãos
Por Gisele Brito, em Rede Brasil Atual
Debate na Universidade de São Paulo sobre a gratuidade universal no sistema de transporte público reuniu no último dia 8 o filosofo Vladimir Safatle, a relatora especial da ONU para moradia adequada, Raquel Rolnik, o engenheiro Lucio Gregori, autor da proposta do passe livre em 1990, quando exercia o cargo de secretário de transportes na gestão de Luiza Erundina (1989-1992), em São Paulo, e representantes do Movimento Passe Livre da cidade. Sob o mote de “Tarifa Zero: Uma Realidade Possível” os debatedores foram unânimes em afirmar que a revindicação vai além de uma demanda específica e que é preciso incluir a mobilidade como um direito constitucional. O desafio para essa mudança, expuseram, passa por uma disputa político-ideológica. Para eles, a reivindicação põe diversos paradigmas do sistema vigente como o direito à cidade, a não-mercatilização da vida, e a liberdade em debate. Na entrevista a seguir, Gregori trata dessas questões e coloca o dedo na ferida: uma reforma tributária é fundamental para que cidades como São Paulo reassumam a responsabilidade pelos deslocamentos humanos.
A tarifa zero é possível?
Você pode pensar a questão da possibilidade em função das limitações técnicas e científicas. Por exemplo, ainda não se pode colocar uma nave tripulada em marte porque não há tecnologia para isso. A tarifa não se inclui nisso. Não há limitação técnica. No fundo, o passe livre nada mais é do que o transporte coletivo pago indiretamente por meio dos impostos pagos pela sociedade. Coisa que já existe na educação, na saúde pública e etc.. Mas há outra discussão sobre a possibilidade: o que é possível e impossível dentro de uma disputa política? Uma porção de coisas é resultado de vencedores políticos. Por exemplo, o bolsa empresário, pelo qual empréstimos a custos baixíssimos são dados a empresários com a justificativa de que isso vai ajudar o país crescer. Enfim, várias medidas dessa natureza são viáveis porque existe uma disputa política e determinados setores da sociedade conseguem fazer seu ponto de vista vencedor. E a tarifa zero está nesse contexto. Trata-se de fazer arregimentação de forças políticas para ela se tornar uma ideia vencedora. Portanto, eu não estou falando mais de questões técnicas, mas de disputa política.
E tecnicamente, como se faz isso?
Você tem diferentes escalas de cidade. Em alguns casos, com o que já existe de dinheiro na prefeitura dá para fazer transporte gratuito. Existem cidades no Brasil que já fizeram isso. Agudos, em São Paulo, e Porto Real, no Rio de Janeiro. Mas na escala de São Paulo, com o orçamento vigente, a estrutura de impostos não dá para se fazer. Então é necessário fazer reforma tributária. Eu posso pensar em reformas meramente municipais, como propusemos em 1990, com mudanças no IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). Mas quando eu falo de reforma tributária, estou falando de maneira mais geral. Porque o Brasil tem uma estrutura tributária ao contrário de tudo aquilo que rezam os bons manuais de tributos. Os tributos na sociedade moderna são para fazer aquilo que a gente chama de socialização dos benefícios. Impostos progressivos. Pagar mais quem tem mais dinheiro, menos quem tem menos e nada quem não tem dinheiro. Mas no Brasil o imposto é sobretudo sobre o consumo e a produção e não sobre a renda. Então, quando falo de reforma estou falando no geral, porque aí eu não estou falando mais de disputa de recursos municipais, mas de disputas de uma discussão política na sociedade. Se a sociedade achar que a mobilidade é fundamental e todas as pessoas têm de ter muita mobilidade e acesso a ela a preços baixos ou nulos vai ter de ter uma disputa política na sociedade como um todo para ter uma reforma tributária.
Existe alguma forma de financiamento para a mobilidade no Brasil?
Não existe nenhum imposto para financiar a mobilidade. Ela está a parte, em um bolo geral. Diferentemente da saúde e educação que têm um mínimo de participação nos orçamentos públicos. Isso é uma construção histórica. Na origem você queria que não houvesse necessidade de mobilidade. Os colonos das fazendas viviam nas fazendas. As indústrias tinham suas vilas industriais que existiam justamente para que o trabalhador morasse pertinho. À medida que isso se diversificou passaram a responsabilidade para o Estado, depois vislumbraram uma nova frente de negócio e veio a concessão. Daí se constrói todo um aparato jurídico, ideológico que transfere a responsabilidade do deslocamento para o cidadão. Ele é o responsável por se deslocar e, portanto, tem de pagar por isso.
O sujeito dessa lógica é menos o cidadão e mais o trabalhador, não? Já que fora dos horários de trabalho e aos fins de semana, ou seja, os dias de não trabalho, há menos transporte.
Sim. O trabalhador entendido de maneira ampla, que inclui o professor, o operário. Enfim. Aí está uma construção ideológica escondida. Sempre que se menciona a importância da mobilidade se fala no deslocamento residência/trabalho, trabalho/residência. Em morar perto do trabalho, de chegar rápido ao trabalho. Parecendo que no mundo moderno você se mobiliza apenas para trabalhar e voltar para casa. E o resto? Além do próprio direito à cidade, a mobilidade tem um outro significado, também obscurecido, que é a liberdade. Desde que nascemos dependemos de alguém para nos deslocar. Mas há uma fase da vida em que se ambiciona ter a mobilidade da gente. Portanto, a mobilidade é uma forma de liberdade. E é uma forma de estar preso não ter recursos suficientes para fazer todos os deslocamentos que se deseja. A questão da mobilidade mexe com um conceito amplo de liberdade.
E a liberdade é um conceito que vende muito carro, não é?
Exatamente.
O Estado consegue dar conta de oferecer liberdade para as pessoas?
Se você faz um transporte gratuito já aumenta muito essa noção de liberdade. Por isso, nós não estamos mais falando da tarifa de ônibus. Ao falar de tarifa zero estamos discutimos a política da sociedade em que vivemos. Senão eu caio de novo em transformar isso em uma discussão técnica, científica, quando não é.
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