terça-feira, 4 de setembro de 2012

Estatizantes e privatistas? :: Antonio Delfim Netto


O Brasil não resiste a uma boa dicotomia, mesmo que ela seja meramente semântica e, principalmente, se desprovida de conteúdo.
Todos têm de ser ou keynesianos ou não keynesianos; marxistas ou contra Marx; defensores do “mainstream” ou heterodoxos; defensores do Estado mínimo e do setor privado máximo, ou vice-versa, um Estado máximo e um setor privado mínimo; desenvolvimentistas ou monetaristas. Cada uma dessas categorias é um conjunto vazio.
É verdade absoluta que: Marx nunca foi marxista e tinha dúvidas sobre eles; Keynes nunca foi keynesiano e desconfiava de quem declarasse que o fosse; Samuelson, o criador da síntese neoclássica, teve frequentes achaques de fraqueza heterodoxa; o sempre abusado Hayek foi muito melhor e mais sofisticado do que o que supõem os “não hayekianos”.
Nunca defendeu o mercado perfeito e desconfiava das “perturbações” financeiras.
Nem o mais míope dos desenvolvimentistas nega as restrições impostas pelas limitações da poupança interna, os riscos da externa e a necessidade do equilíbrio monetário; nem o mais exagerado monetarista ignora o fato que o “equilíbrio monetário” não é fim em si mesmo, mas instrumento para acelerar o crescimento e, não, inibi-lo…
Pois não é que neste momento importante, em que se procura (e se espera, com leilões bem feitos) transferir boa parte dos investimentos de infraestrutura para o setor privado – que é mais eficiente e tem como obter recursos fora do Tesouro -, a mídia descobre que o governo está supostamente infectado no setor aeroportuário por duas novas categorias: os “privatistas” e os “estatizantes”.
Divergem sobre o papel da Infraero, papel sobre o qual, aliás, a sociedade brasileira tem sérias críticas, e de cuja eficiência é licito duvidar-se dado ao seu mal de origem…
A Infraero, como todo ser (público ou privado), tem no seu DNA a inexorável propensão à sobrevivência e à sua reprodução.
Eles são organismos vivos, cujos colaboradores buscam a sua cota de poder, aumentando o número de seus subordinados, como afirma a velha lei de Parkinson.
A questão nada tem de ideológica. Tem a ver com o poder detido nas mãos dos administradores! Tudo absolutamente humano, natural, quase biológico! Com que misteriosa racionalidade há de convencer-se alguém que deve ceder o seu pequeno “espaço de poder”, duramente conquistado e bravamente defendido a cada ano no Congresso Nacional para ampliar o seu orçamento?
O mundo não está ameaçado pelos problemas dos mercados (que são muitos), ou do “capitalismo privado”, mas por uma falha dos governos, que foram incapazes de manter sob a rígida regulação (construída nos anos 30 do século passado) o sistema financeiro. Apesar de todas as incertezas que nos cercam, resta uma certeza: o mundo não vai acabar.
Vai sair desta crise melhor do que entrou: mais eficiente e mais igualitário. É apenas uma questão de tempo, talvez anos.
Continua a atuar o processo civilizatório, iniciado com a incorporação e expansão do uso do conhecimento científico e tecnológico, combinado com o sistema de sufrágio universal, na grande maioria dos países.
Foi ele que trouxe o mundo da Idade da Pedra à da informática. Gozamos do benefício de estar no mundo e vamos pagar o ônus de nele estar, mas é mais do que evidente que temos uma boa margem de manobra para prosseguir no nosso crescimento.
Temos, obviamente, uma miríade de problemas a resolver, mas não podemos atacá-los ao mesmo tempo. Temos de hierarquizá-los.
É mais do que claro que hoje os constrangimentos impostos pela deficiência de nossa infraestrutura, e suas consequências logísticas, colocam-na como primeira prioridade.
Acertadamente, o governo acaba de lançar um grande programa de concessões e recriar uma empresa para cuidar do problema logístico, abandonado desde 1985.
O problema fundamental é que não existem recursos públicos para atendê-los. É preciso, portanto, cooptar o setor privado, que tem recursos, com leilões seguros, que fixem as condições mais adequadas para sua compatibilização com o interesse público.
Não adianta tergiversar ou filosofar. O governo – e muito menos o BNDES – não cria recursos. Na melhor das hipóteses, o primeiro pode economizar no custeio e aumentar seus investimentos.
No limite, poderia aumentar os impostos e desperdiçá-los na baixa produtividade dos investimentos que faz diretamente, reduzindo ainda mais o crescimento.
O Tesouro só tem recursos se houver um superávit fiscal autêntico, ou um aumento do endividamento junto ao público que, para ser efetivo, tem de reduzir ou o consumo, ou o investimento privado, diluindo parte do seu efeito no crescimento.
Deve ser claro que tal disputa (se existir!) não é sobre racionalidade econômica, mas sobre as conveniências do “poder” de controlar diretamente a atividade.
Isso nos leva ao eterno problema: a maior influência política na execução direta dos investimentos é, frequentemente, acompanhada de maior desperdício e menor eficiência à custa do desenvolvimento social e econômico do país.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.

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