A condenação do automóvel individual como forma predominante de transporte nas grandes cidades é cada vez mais ampla, incisiva e bem fundamentada.
E o mais interessante é que essas críticas começam a tomar corpo no interior da própria indústria. Nos países desenvolvidos, o automóvel é frequentemente comparado ao tabaco, em função de seus efeitos danosos sobre a vida urbana.
É verdade que, em muitos casos, a indústria automobilística empenha-se no uso mais eficiente de energia e de materiais. Mas isso não impede Bill Ford, bisneto do fundador da companhia que leva seu nome, de fazer a constatação fundamental: uma vida urbana melhor é incompatível com o horizonte de que cada família possua dois carros.
A Ford tem um plano de mobilidade em três etapas (para um período que vai além de 2025) cujas bases estão, simultaneamente, nos ganhos de eficiência que as tecnologias da informação trarão ao automóvel e, ao mesmo tempo, na perda do poder que ele tem hoje na matriz mundial dos transportes.
A partir de 2025, segundo a empresa, a paisagem dos transportes será outra, com pedestres, bicicletas, veículos individuais e transportes coletivos conectados em rede, com base em poderosos dispositivos digitais.
Da mesma forma que a IBM abandonou a produção de computadores, mas se manteve líder em serviços de informação em rede, a indústria automobilística vai ter que se reinventar.
Foi a mensagem do encontro promovido pela “Audi Urban Future Summit” (Audi) em 2010, no qual personalidades importantes da sociologia mundial como Saskia Sassen e Richard Sennet contribuíram para que fossem colocadas questões decisivas: será que as empresas automobilísticas de hoje produzirão carros no futuro? Isso convém à ambição de melhorar a mobilidade nas grandes cidades?
É verdade que, até aqui, a maior parte do setor tem fechado os olhos a essas perguntas. Um executivo da Volkswagen, diante das cotas de emplacamento adotadas em grandes cidades chinesas, como reação à poluição e aos engarrafamentos no país, não hesitou em declarar que a empresa se dirigiria ao interior e que isso não prejudicaria a expansão de seus negócios.
As perspectivas de ganho por parte da indústria são tão grandes que entre cidades sustentáveis e ampliação na frota de automóveis a opção das montadoras deixa, infelizmente, pouca margem a dúvidas.
É muito importante, neste sentido, o documento recente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), fruto do excelente estudo levado adiante pela equipe liderada por Sérgio Magalhães, arquiteto, urbanista, professor da FAU/UFRJ e ex-secretário de Habitação do Estado do Rio de Janeiro.
Na apresentação do trabalho, Robson Braga Andrade, presidente da entidade, afirma: “As cidades brasileiras estão parando”. Os ambientes urbanos são cada vez mais importantes na inovação, no emprego e em uma vida social mais rica e diversificada e, no entanto, as cidades, apesar de seu extraordinário dinamismo, são incapazes de oferecer horizontes promissores à maior parte dos que nelas habitam.
Na raiz do estrangulamento urbano está a maneira como se formou, no Brasil, o vínculo entre habitação e transportes. Em vez de concentrar o crescimento urbano ao longo dos equipamentos de transportes sobre trilhos, predominantes na primeira metade do século 20, as cidades brasileiras adotaram um caminho duplamente perverso.
Por um lado, promoveram formas de ocupação do espaço habitacional que aprofundou o abismo entre periferias, desprovidas de serviços públicos, com baixa densidade populacional e onde é precária a própria presença do Estado e áreas centrais com força econômica, para as quais é preciso deslocar-se diariamente num esforço extremamente penoso e que consome tempo imenso.
Por outro lado, submeteram-se ao império do transporte motorizado e sobre pneus, capaz de chegar justamente a essas áreas distantes, mas desprovidas das infraestruturas elementares de uma vida urbana civilizada.
De todas as habitações construídas no país, 80% não contaram com qualquer tipo de financiamento formal ou assistência pública. O problema desta autoconstrução, como bem coloca o documento da CNI, é que “a família produz o domicílio, mas só o coletivo produz infraestruturas”.
Mesmo que a renda dessas famílias tenha, recentemente aumentado, elas seguem, em sua maioria, distantes dos bens públicos e dos equipamentos coletivos sem os quais dificilmente se pode falar em cidadania. Saneamento precário, transportes de baixa qualidade, dificuldades crescentes com relação à segurança em áreas distantes dos grandes centros, estas são algumas das marcas decisivas das periferias brasileiras.
A elas acrescentam-se os congestionamentos, que comprometem não só a mobilidade dos que têm carros, mas, sobretudo, a dos que dependem desses transportes coletivos de baixa qualidade.
Como os congestionamentos são cada vez maiores e atingem número crescente de cidades (e não só as metrópoles), cria-se imensa pressão para que as autoridades resolvam o problema do trânsito, abrindo novas vias que, em pouco tempo, acabam tão intransitáveis quanto aquelas às quais elas tinham, originalmente, a intenção de imprimir maior fluidez.
Transportes coletivos de alta qualidade, financiamento a habitações populares e, ao mesmo tempo, contenção do espalhamento geográfico das cidades, são os três vetores fundamentais para um ambiente urbano capaz de propiciar desenvolvimento a seus habitantes.
Apesar da profundidade do diagnóstico e da criatividade das propostas para enfrentar os problemas urbanos brasileiros, o texto da CNI deixa de levantar justamente a questão central que Bill Ford e os participantes do evento da Audi discutem: continuar aumentando a produção de automóveis individuais, será isso coerente com a inversão das prioridades do planejamento urbano em direção a transportes coletivos de alta qualidade?
O documento faz propostas interessantes à atuação do poder público para ampliar a mobilidade. Mas não é admissível que, diante de constatações tão ricas e bem fundamentadas, as atividades das montadoras sigam de vento em popa, com vasto apoio governamental, como se elas nada tivessem a ver com o colapso das cidades que o estudo de sua representante maior, a CNI, denuncia.
Fonte: Folha de S. Paulo, Por Ricardo Abramovay
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