Remunerar as empresas contratadas exclusivamente por custos operacionais e adicional de capital é o ponto de partida para se abrir e democratizar a discussão do transporte e da tarifa com a cidade. A cidadania, através da Prefeitura, a precisa exercer o seu poder de mando sobre as linhas. E isso inclui definir a lógica da remuneração pelo serviço prestado aos operadores da malha. Por Mauro Zilbovicius e Lúcio Gregori
Mauro Zilbovicius e Lúcio Gregori*
Há um ‘personagem’ que monopoliza a narrativa dos protestos e debates em torno da tarifa do transporte coletivo urbano: a “caixa preta” na qual se ocultam as distorções e gorduras de planilhas controladas pelas empresas do setor.
A planilha misteriosa atravessa os tempos: é a mesma utilizada pelo GEIPOT, ainda na ditadura.
A trajetória adensa as suspeitas e expectativas: uma vez aberta a caixa preta, resolve-se o desafio de baratear e qualificar o transporte coletivo?
Nada mais equivocado.
Os dois principais itens da operação são a mão-de-obra (entre 45% e 50% do custo total) e os combustíveis (em torno de 20% do total).
Manutenção, reposição, impostos, taxas, depreciação do investimento em novos veículos e garagens complementam o núcleo duro dos custos.
Nada disso está oculto, nem é difícil de medir. Antes dos reajustes, a prefeitura de São Paulo publica essa planilha no Diário Oficial e na internet.
Por aí a margem de manobra é estreita.
A verdadeira caixa preta consiste em destrancar a lógica que ordena a discussão.
Só se supera aquilo que se substitui.
A prefeitura precisa trazer para a cidadania e para as empresas outra lógica, ancorada em dois pilares de discussão: a) o custo total do sistema de ônibus e b) o critério de remuneração das concessionárias ou permissionárias, contratadas para executar o serviço.
Esta é a chave.
Essa ponderação permitirá à cidade e às autoridades avaliarem se o custo total do sistema é remunerado adequadamente ou não.
Um sistema de ônibus urbanos pode e deve ser dimensionado a partir da demanda e da concepção da cidade.
(Esse novo dimensionamento deve incluir os seguintes itens): trajetos, frequências, conforto da viagem, o nível de ocupação dos ônibus – passageiros por metro quadrado, no horário de pico ou de ‘vale’ –, tempo de viagem, tempo de espera no ponto, distância da origem e do destino dos pontos mais próximos, qualidade oferecida nos veículos (ar condicionado; motor traseiro; transmissão automática; piso baixo; nível de ruído interno e externo; e outros).
Esse dimensionamento define os chamados capex e opex , respectivamente, os gastos de capital (capital expenditures) e da operação propriamente dita (operational expenditures).
O conjunto define as condições do serviço a ser contratado. A formatação desse ‘pacote’ é uma prerrogativa do planejamento urbano do contratante: a prefeitura, que não pode rebaixar o exercício dessa responsabilidade.
Feito isso, há que se reconhecer um fato crucial: dado um padrão de serviço exigido, seu custo é fixo em relação aos passageiros transportados. Em resumo: não importa quantos passageiros o veículo transportará.
O custo variável por passageiro, embora mensurável, é desprezível em relação ao custo fixo da operação. Um passageiro a mais não custa nada a mais (rigorosamente, custa uma fração infinitesimal do custo).
Os economistas dirão que, na margem, os passageiros custam zero.
O que modifica os custos são as variações significativas do nível de serviço (e consequentemente, dos insumos. Apenas quando acontecem, os custos mudam).
Assim, não tem o menor sentido falar-se em custo ou remuneração por passageiro.
O número de passageiros transportados não é, em si mesmo, o objeto de cálculo do custo do sistema, mas a base do seu dimensionamento.
Há situações correlatas que ajudam a entender essa escala do negócio.
Em sistemas de TV a cabo, por exemplo, o novo assinante não representa custo, já que a rede está instalada para uma certa capacidade de ligações.
Ou ainda, sistemas de telefonia celular e fixo. Ou o passageiro adicional no avião que vai decolar de qualquer jeito, com lugares vazios.
A receita adicional nesses casos é bem vinda, desde que seja maior do que o custo variável e marginal do passageiro.
No caso do avião, este custo resume-se ao combustível gasto pelo peso do passageiro adicional.
O acréscimo tende a zero, comparado com os custos fixos da viagem.
Por isso, em todos estes negócios, o que importa é maximizar a receita usando o máximo do investimento feito: o custo, para todos os efeitos, é fixo.
O problema da companhia aérea é não transportar poltronas vazias... Razão pela qual existem planos promocionais desses serviços – mesmo caso da telefonia, por exemplo. Fale “x” minutos e não pague a mais, etc.
O intuito é ocupar no tempo, inteiramente, a rede operacional, cujo capex (gasto de capital) já foi feito na instalação do sistema e o opex (custo da operação) não cresce por conta da ligação a mais que o usuário completa.
Outro exemplo é o táxi.
Um passageiro entra no táxi e diz o endereço de destino. A meio caminho encontra um ou mais amigos andando a pé e os convida para entrar no táxi. Esses novos passageiros obviamente não pagam nada por isso, pois não significam quase nenhum custo adicional, este já calculado quando dos custos registrados no taxímetro.
Decorre daí a pergunta que remete à questão original da tal da lógica que ordena o custo da tarifa em São Paulo: se o custo é fixo, porque remunerar os contratados pela Prefeitura por passageiro, como acontece hoje?
Porque licitar e contratar por um valor de remuneração por passageiro se isso implica que, por exemplo, mais passageiros transportados proporcionam maior receita, e nenhum custo?
A lógica tem que mudar. O problema está nela, não na tal caixa preta.
Pior ainda.
Mantida essa lógica, ocorrem situações absurdas.
Uma hipótese: se o número de passageiros cai no sistema porque, por exemplo, ele é de péssima qualidade, o que motiva concorrentes clandestinos, o contratante pode incorrer no erro de avaliar que o “custo aumentou” ( porque a fração custo/passageiro se eleva).
Em outras palavras, o contratante é onerado por uma ineficiência do contratado.
O custo unitário por passageiro é uma grandeza falaciosa e leva a esses erros crassos de política pública (e privada também, é forçoso admitir).
Um último exemplo do equívoco embutido na lógica de remuneração por passageiro.
Quando surge o serviço clandestino na linha, com tarifa de R$ 0,80, digamos, ele rouba 10% dos passageiros ( para uma tarifa de R$ 1,00) por exemplo.
Quem faz a conta por passageiro entenderá, erroneamente, que o sistema se desequilibrou, pois menos passageiros resultarão em menor receita.
“Racionalmente” o contratante vai ter que reajustar a tarifa para compensar a perda de receita.
Ou, ainda, diminuir os custos reduzindo a frota operante, o que agravará novamente a sua situação, pois os clandestinos ficarão mais competitivos...
Uma espiral típica de “cabeças de planilha” que leva a um ciclo suicida…
Alguns argumentarão que a remuneração por passageiro é um instrumento de controle da Prefeitura.
Supostamente, evitaria o descaso com passageiros abandonados nos pontos etc.
Vejamos. Num táxi, é o usuário que controla o trajeto, caso o motorista queira estendê-lo indevidamente. Nos ônibus, é o poder contratante que deve fiscalizar o trajeto, bem como as paradas obrigatórias, o total de passageiros recolhidos etc.
Hoje, mais do que nunca, isso pode ser feito instantaneamente, com o aparato tecnológico disponível.
Para resumir: num sistema como o atual, que leve em conta a remuneração também por passageiro, o empresário é levado a baixar seu custo ofertando menos viagens, de modo a lotar um número menor de veículos, o que significará serviço de pior qualidade.
Além disso, dará prioridade às linhas mais rentáveis, ou seja, com alto índice de passageiros por extensão rodada.
Para ser enfático: a linha de ônibus e número de passageiros transportados não deve e não pode ser uma variável sobre a qual o empresário tenha qualquer interferência.
Não lhe diz respeito: quem decide isso é o contratante.
Ademais, é preciso advertir que nem Thatcher ou Pinochet conseguiram resolver os desafios dos sistemas de transportes coletivos à la mercado.
Ou seja, não tem cabimento a Prefeitura adotar um regime de concessão de linhas e mesmo de áreas ou regiões homogêneas em termos de passageiros por quilômetro.
Dadas as características monopsônicas (inverso de monopólio) desse mercado, cabe-lhe calcular o custo operacional e de capital, pagando tão somente esse custo. Adicionando-lhe uma margem de lucro competitiva em relação a outras oportunidades de aplicação do capital.
Ponto.
Redefinido o jogo com base nessa lógica, aí sim o poder concedente, a Prefeitura de São Paulo, no caso, conseguirá dimensionar o sistema exclusivamente em função do interesse dos usuários e da cidade.
Livra-se do círculo vicioso que é a discussão a gosto das empresas, baseada no rateio de linha mais ou menos rentável, custo por passageiro etc.
A distorção não se limita à esfera financeira. Ela prejudica todo o planejamento e a ação da Prefeitura no sistema de transporte.
Nos corredores de ônibus, tal como operam atualmente, ocorre a mesma lógica perversa que descrevemos.
Mantido o equívoco do custo por passageiro, é fácil perceber-se porque eles acabam congestionados pelos próprios ônibus.
A razão é que as empresas vão disputar passageiros ali ferozmente, posto que também são remuneradas pela lotação.
Os corredores, desse modo, distanciam-se ainda mais da sua concepção original: um fluxo livre de um terminal a outro, salvo algumas eventuais exceções.
O corredor deve se mirar no metrô: não existe o caos da ‘ultrapassagem de veículos no metrô’; nenhum passageiro “espera o meu trem” numa estação de metrô. Assim deveria ser o corredor de ônibus.
Ao cancelar a maior licitação de linhas de São Paulo, a Prefeitura abriu um espaço redefinir as bases do modelo de transporte que a cidade precisa e que ela vai contratar.
Repita-se, é sua prerrogativa definir as regras do jogo que tornem mais racional e eficiente o sistema de transporte na cidade.
O modelo de contratação e a fórmula de remuneração dos serviços devem ser debatidos de forma transparente com a cidadania.
A contratação por frota com exclusivo pagamento do opex calculado como acima mostrado é de longe o que mais interessa à população.
Absurdos como o inverso, ou seja, frota pública operada pelas empresas, com gigantescos investimentos da Prefeitura/Estado em compra de frota, deixando às empresas o “filé” de terceirizar a mão-de-obra etc.; ou propostas de estatização completa do sistema, novamente fazendo uma enorme despesa de capital pela Prefeitura, são completamente fora de sentido no momento.
Curioso que essas “sugestões” são aventadas ao mesmo tempo em que o prefeito diz não ter dinheiro para subsidiar R$0,20 na tarifa, ou diz que a Prefeitura corre o risco de insolvência.
O mais certo é a contratação de frota, como um fretamento.
Se mantido o sistema de concessão, que só tem vantagem para o empresário, é indispensável separar o custo da tarifa cobrada, se cobrada.
É o que prevê o artigo nono e parágrafos da Lei da Mobilidade promulgada pela presidenta Dilma, em janeiro de 2012.
Separa-se ali a tarifa (o opex) do que for a remuneração paga ao concessionário, conforme os custos. Estes devem ser calculados como mencionamos, da tarifa pública cobrada do usuário, desejavelmente subsidiada ou, no limite, zero.
A conjuntura atual tem muita semelhança com a de 1991, para melhor, pois a mobilização das ruas ampliou a margem de manobra da Prefeitura.
Naquela oportunidade, os contratos em regime de concessões, que só interessam aos empresários, estavam vencidos como hoje.
A crise do transporte estava escancarada.
Como hoje, a ponto de o prefeito suspender a concorrência para renovação das concessões.
Em 1991 os contratos de concessão foram substituídos pelos de fretamento, tal como descrito acima, com suas evidentes vantagens para a população.
Foram incorporados mais 2.000 novos ônibus em seis meses de contratos, para uma frota então existente de 8.000!
Um salto tristemente revertido para o velho sistema de concessões e remuneração por passageiro, no governo de Marta Suplicy.
A irracionalidade dessa escolha é tanta que, por acaso, se a remuneração por passageiros for superior a dos custos do sistema (custo mais lucro), recursos adicionais serão indevidamente transferidos para os contratados. Um caso de enriquecimento ilícito?
Mas o inverso, em tese, também pode ocorrer.
Se a remuneração for menor do que custo mais o lucro previamente definido, não se estará contribuindo para que o sistema se degrade, com retirada de ônibus?
No edital ora cancelado, propôs-se fazer a remuneração “50% por custos e 50% por passageiro”, algo que não tem qualquer sentido em termos de remuneração de custos reais.
É forçoso repetir à exaustão: a discussão sobre planilha de custos não deve ser o centro do debate; o que importa é a forma de remuneração dos serviços contratados.
A discussão de uma planilha absolutamente insuspeita pode ser feita por um Conselho Municipal de Tarifas, com dois ou três representantes da Prefeitura, representantes da Fipe,
Dieese, Ministério Público, e outros representantes da sociedade civil, que estabelecerá essa planilha “acima de qualquer suspeita”.
Isso já aconteceu em 1989/1990 no governo municipal de S. Paulo.
É hora de mudar, definitivamente, para o fretamento.
O que precisa ser estatizado, definitivamente, é a gestão do sistema.
Ou seja, a Prefeitura deve exercer integralmente sua prerrogativa e o direito de dimensionar linhas tendo em vista os interesses dos usuários e a cidade que se deseja.
Remunerar as empresas contratadas exclusivamente por custos operacionais e adicional de capital é o ponto de partida para se abrir e democratizar a discussão do transporte e da tarifa com a cidade.
A cidadania, através da Prefeitura, precisa exercer o seu poder de mando sobre as linhas. E isso inclui definir a lógica da remuneração pelo serviço prestado aos operadores da malha.
Trata-se de uma questão política. Não é contabilidade: é o poder de a cidade comandar o seu próprio destino.
* Mauro Zilbovicius é ex-secretário interino de Serviços e Obras da Prefeitura de São Paulo, professor doutor do Departamento de Engenharia de Produção da Poli-USP e membro do Conselho Curador da Fundação Vanzolini. Lúcio Gregori é engenheiro e ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo (1990-1992).
Mauro Zilbovicius e Lúcio Gregori*
Há um ‘personagem’ que monopoliza a narrativa dos protestos e debates em torno da tarifa do transporte coletivo urbano: a “caixa preta” na qual se ocultam as distorções e gorduras de planilhas controladas pelas empresas do setor.
A planilha misteriosa atravessa os tempos: é a mesma utilizada pelo GEIPOT, ainda na ditadura.
A trajetória adensa as suspeitas e expectativas: uma vez aberta a caixa preta, resolve-se o desafio de baratear e qualificar o transporte coletivo?
Nada mais equivocado.
Os dois principais itens da operação são a mão-de-obra (entre 45% e 50% do custo total) e os combustíveis (em torno de 20% do total).
Manutenção, reposição, impostos, taxas, depreciação do investimento em novos veículos e garagens complementam o núcleo duro dos custos.
Nada disso está oculto, nem é difícil de medir. Antes dos reajustes, a prefeitura de São Paulo publica essa planilha no Diário Oficial e na internet.
Por aí a margem de manobra é estreita.
A verdadeira caixa preta consiste em destrancar a lógica que ordena a discussão.
Só se supera aquilo que se substitui.
A prefeitura precisa trazer para a cidadania e para as empresas outra lógica, ancorada em dois pilares de discussão: a) o custo total do sistema de ônibus e b) o critério de remuneração das concessionárias ou permissionárias, contratadas para executar o serviço.
Esta é a chave.
Essa ponderação permitirá à cidade e às autoridades avaliarem se o custo total do sistema é remunerado adequadamente ou não.
Um sistema de ônibus urbanos pode e deve ser dimensionado a partir da demanda e da concepção da cidade.
(Esse novo dimensionamento deve incluir os seguintes itens): trajetos, frequências, conforto da viagem, o nível de ocupação dos ônibus – passageiros por metro quadrado, no horário de pico ou de ‘vale’ –, tempo de viagem, tempo de espera no ponto, distância da origem e do destino dos pontos mais próximos, qualidade oferecida nos veículos (ar condicionado; motor traseiro; transmissão automática; piso baixo; nível de ruído interno e externo; e outros).
Esse dimensionamento define os chamados capex e opex , respectivamente, os gastos de capital (capital expenditures) e da operação propriamente dita (operational expenditures).
O conjunto define as condições do serviço a ser contratado. A formatação desse ‘pacote’ é uma prerrogativa do planejamento urbano do contratante: a prefeitura, que não pode rebaixar o exercício dessa responsabilidade.
Feito isso, há que se reconhecer um fato crucial: dado um padrão de serviço exigido, seu custo é fixo em relação aos passageiros transportados. Em resumo: não importa quantos passageiros o veículo transportará.
O custo variável por passageiro, embora mensurável, é desprezível em relação ao custo fixo da operação. Um passageiro a mais não custa nada a mais (rigorosamente, custa uma fração infinitesimal do custo).
Os economistas dirão que, na margem, os passageiros custam zero.
O que modifica os custos são as variações significativas do nível de serviço (e consequentemente, dos insumos. Apenas quando acontecem, os custos mudam).
Assim, não tem o menor sentido falar-se em custo ou remuneração por passageiro.
O número de passageiros transportados não é, em si mesmo, o objeto de cálculo do custo do sistema, mas a base do seu dimensionamento.
Há situações correlatas que ajudam a entender essa escala do negócio.
Em sistemas de TV a cabo, por exemplo, o novo assinante não representa custo, já que a rede está instalada para uma certa capacidade de ligações.
Ou ainda, sistemas de telefonia celular e fixo. Ou o passageiro adicional no avião que vai decolar de qualquer jeito, com lugares vazios.
A receita adicional nesses casos é bem vinda, desde que seja maior do que o custo variável e marginal do passageiro.
No caso do avião, este custo resume-se ao combustível gasto pelo peso do passageiro adicional.
O acréscimo tende a zero, comparado com os custos fixos da viagem.
Por isso, em todos estes negócios, o que importa é maximizar a receita usando o máximo do investimento feito: o custo, para todos os efeitos, é fixo.
O problema da companhia aérea é não transportar poltronas vazias... Razão pela qual existem planos promocionais desses serviços – mesmo caso da telefonia, por exemplo. Fale “x” minutos e não pague a mais, etc.
O intuito é ocupar no tempo, inteiramente, a rede operacional, cujo capex (gasto de capital) já foi feito na instalação do sistema e o opex (custo da operação) não cresce por conta da ligação a mais que o usuário completa.
Outro exemplo é o táxi.
Um passageiro entra no táxi e diz o endereço de destino. A meio caminho encontra um ou mais amigos andando a pé e os convida para entrar no táxi. Esses novos passageiros obviamente não pagam nada por isso, pois não significam quase nenhum custo adicional, este já calculado quando dos custos registrados no taxímetro.
Decorre daí a pergunta que remete à questão original da tal da lógica que ordena o custo da tarifa em São Paulo: se o custo é fixo, porque remunerar os contratados pela Prefeitura por passageiro, como acontece hoje?
Porque licitar e contratar por um valor de remuneração por passageiro se isso implica que, por exemplo, mais passageiros transportados proporcionam maior receita, e nenhum custo?
A lógica tem que mudar. O problema está nela, não na tal caixa preta.
Pior ainda.
Mantida essa lógica, ocorrem situações absurdas.
Uma hipótese: se o número de passageiros cai no sistema porque, por exemplo, ele é de péssima qualidade, o que motiva concorrentes clandestinos, o contratante pode incorrer no erro de avaliar que o “custo aumentou” ( porque a fração custo/passageiro se eleva).
Em outras palavras, o contratante é onerado por uma ineficiência do contratado.
O custo unitário por passageiro é uma grandeza falaciosa e leva a esses erros crassos de política pública (e privada também, é forçoso admitir).
Um último exemplo do equívoco embutido na lógica de remuneração por passageiro.
Quando surge o serviço clandestino na linha, com tarifa de R$ 0,80, digamos, ele rouba 10% dos passageiros ( para uma tarifa de R$ 1,00) por exemplo.
Quem faz a conta por passageiro entenderá, erroneamente, que o sistema se desequilibrou, pois menos passageiros resultarão em menor receita.
“Racionalmente” o contratante vai ter que reajustar a tarifa para compensar a perda de receita.
Ou, ainda, diminuir os custos reduzindo a frota operante, o que agravará novamente a sua situação, pois os clandestinos ficarão mais competitivos...
Uma espiral típica de “cabeças de planilha” que leva a um ciclo suicida…
Alguns argumentarão que a remuneração por passageiro é um instrumento de controle da Prefeitura.
Supostamente, evitaria o descaso com passageiros abandonados nos pontos etc.
Vejamos. Num táxi, é o usuário que controla o trajeto, caso o motorista queira estendê-lo indevidamente. Nos ônibus, é o poder contratante que deve fiscalizar o trajeto, bem como as paradas obrigatórias, o total de passageiros recolhidos etc.
Hoje, mais do que nunca, isso pode ser feito instantaneamente, com o aparato tecnológico disponível.
Para resumir: num sistema como o atual, que leve em conta a remuneração também por passageiro, o empresário é levado a baixar seu custo ofertando menos viagens, de modo a lotar um número menor de veículos, o que significará serviço de pior qualidade.
Além disso, dará prioridade às linhas mais rentáveis, ou seja, com alto índice de passageiros por extensão rodada.
Para ser enfático: a linha de ônibus e número de passageiros transportados não deve e não pode ser uma variável sobre a qual o empresário tenha qualquer interferência.
Não lhe diz respeito: quem decide isso é o contratante.
Ademais, é preciso advertir que nem Thatcher ou Pinochet conseguiram resolver os desafios dos sistemas de transportes coletivos à la mercado.
Ou seja, não tem cabimento a Prefeitura adotar um regime de concessão de linhas e mesmo de áreas ou regiões homogêneas em termos de passageiros por quilômetro.
Dadas as características monopsônicas (inverso de monopólio) desse mercado, cabe-lhe calcular o custo operacional e de capital, pagando tão somente esse custo. Adicionando-lhe uma margem de lucro competitiva em relação a outras oportunidades de aplicação do capital.
Ponto.
Redefinido o jogo com base nessa lógica, aí sim o poder concedente, a Prefeitura de São Paulo, no caso, conseguirá dimensionar o sistema exclusivamente em função do interesse dos usuários e da cidade.
Livra-se do círculo vicioso que é a discussão a gosto das empresas, baseada no rateio de linha mais ou menos rentável, custo por passageiro etc.
A distorção não se limita à esfera financeira. Ela prejudica todo o planejamento e a ação da Prefeitura no sistema de transporte.
Nos corredores de ônibus, tal como operam atualmente, ocorre a mesma lógica perversa que descrevemos.
Mantido o equívoco do custo por passageiro, é fácil perceber-se porque eles acabam congestionados pelos próprios ônibus.
A razão é que as empresas vão disputar passageiros ali ferozmente, posto que também são remuneradas pela lotação.
Os corredores, desse modo, distanciam-se ainda mais da sua concepção original: um fluxo livre de um terminal a outro, salvo algumas eventuais exceções.
O corredor deve se mirar no metrô: não existe o caos da ‘ultrapassagem de veículos no metrô’; nenhum passageiro “espera o meu trem” numa estação de metrô. Assim deveria ser o corredor de ônibus.
Ao cancelar a maior licitação de linhas de São Paulo, a Prefeitura abriu um espaço redefinir as bases do modelo de transporte que a cidade precisa e que ela vai contratar.
Repita-se, é sua prerrogativa definir as regras do jogo que tornem mais racional e eficiente o sistema de transporte na cidade.
O modelo de contratação e a fórmula de remuneração dos serviços devem ser debatidos de forma transparente com a cidadania.
A contratação por frota com exclusivo pagamento do opex calculado como acima mostrado é de longe o que mais interessa à população.
Absurdos como o inverso, ou seja, frota pública operada pelas empresas, com gigantescos investimentos da Prefeitura/Estado em compra de frota, deixando às empresas o “filé” de terceirizar a mão-de-obra etc.; ou propostas de estatização completa do sistema, novamente fazendo uma enorme despesa de capital pela Prefeitura, são completamente fora de sentido no momento.
Curioso que essas “sugestões” são aventadas ao mesmo tempo em que o prefeito diz não ter dinheiro para subsidiar R$0,20 na tarifa, ou diz que a Prefeitura corre o risco de insolvência.
O mais certo é a contratação de frota, como um fretamento.
Se mantido o sistema de concessão, que só tem vantagem para o empresário, é indispensável separar o custo da tarifa cobrada, se cobrada.
É o que prevê o artigo nono e parágrafos da Lei da Mobilidade promulgada pela presidenta Dilma, em janeiro de 2012.
Separa-se ali a tarifa (o opex) do que for a remuneração paga ao concessionário, conforme os custos. Estes devem ser calculados como mencionamos, da tarifa pública cobrada do usuário, desejavelmente subsidiada ou, no limite, zero.
A conjuntura atual tem muita semelhança com a de 1991, para melhor, pois a mobilização das ruas ampliou a margem de manobra da Prefeitura.
Naquela oportunidade, os contratos em regime de concessões, que só interessam aos empresários, estavam vencidos como hoje.
A crise do transporte estava escancarada.
Como hoje, a ponto de o prefeito suspender a concorrência para renovação das concessões.
Em 1991 os contratos de concessão foram substituídos pelos de fretamento, tal como descrito acima, com suas evidentes vantagens para a população.
Foram incorporados mais 2.000 novos ônibus em seis meses de contratos, para uma frota então existente de 8.000!
Um salto tristemente revertido para o velho sistema de concessões e remuneração por passageiro, no governo de Marta Suplicy.
A irracionalidade dessa escolha é tanta que, por acaso, se a remuneração por passageiros for superior a dos custos do sistema (custo mais lucro), recursos adicionais serão indevidamente transferidos para os contratados. Um caso de enriquecimento ilícito?
Mas o inverso, em tese, também pode ocorrer.
Se a remuneração for menor do que custo mais o lucro previamente definido, não se estará contribuindo para que o sistema se degrade, com retirada de ônibus?
No edital ora cancelado, propôs-se fazer a remuneração “50% por custos e 50% por passageiro”, algo que não tem qualquer sentido em termos de remuneração de custos reais.
É forçoso repetir à exaustão: a discussão sobre planilha de custos não deve ser o centro do debate; o que importa é a forma de remuneração dos serviços contratados.
A discussão de uma planilha absolutamente insuspeita pode ser feita por um Conselho Municipal de Tarifas, com dois ou três representantes da Prefeitura, representantes da Fipe,
Dieese, Ministério Público, e outros representantes da sociedade civil, que estabelecerá essa planilha “acima de qualquer suspeita”.
Isso já aconteceu em 1989/1990 no governo municipal de S. Paulo.
É hora de mudar, definitivamente, para o fretamento.
O que precisa ser estatizado, definitivamente, é a gestão do sistema.
Ou seja, a Prefeitura deve exercer integralmente sua prerrogativa e o direito de dimensionar linhas tendo em vista os interesses dos usuários e a cidade que se deseja.
Remunerar as empresas contratadas exclusivamente por custos operacionais e adicional de capital é o ponto de partida para se abrir e democratizar a discussão do transporte e da tarifa com a cidade.
A cidadania, através da Prefeitura, precisa exercer o seu poder de mando sobre as linhas. E isso inclui definir a lógica da remuneração pelo serviço prestado aos operadores da malha.
Trata-se de uma questão política. Não é contabilidade: é o poder de a cidade comandar o seu próprio destino.
* Mauro Zilbovicius é ex-secretário interino de Serviços e Obras da Prefeitura de São Paulo, professor doutor do Departamento de Engenharia de Produção da Poli-USP e membro do Conselho Curador da Fundação Vanzolini. Lúcio Gregori é engenheiro e ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo (1990-1992).
Fotos: EBC
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