Se dependesse das leis, como o Estatuto da Cidade, o Brasil teria cidades melhores para as pessoas. Mas os urbanistas estão cansados de fazer planos que não são cumpridos. Quem afirma isso é a professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Ermínia Maricato. Uma das principais urbanistas do país, Ermínia foi secretária-executiva do Ministério das Cidades, entre 2002 e 2005, e secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano do município de São Paulo, entre 1989 e 2002, no governo Luiza Erundina. Pouco antes dos protestos nas cidades brasileiras, ela havia anunciado que era preciso agir diante da força do capital sobre os municípios, com obras muitas vezes que não beneficiam a maioria da população. Agora, Ermínia está otimista, mas avisa: “Não podemos sair das ruas”.
Os protestos que tomaram as ruas no Brasil começaram reivindicando a questão da mobilidade urbana, pedindo as reduções das tarifas de transporte público. O que esses protestos significaram e o que as cidades deveriam fazer em relação a essa pauta?
Vou repetir o que o professor Carlos Vainer [do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano – Ippur/UFRJ] disse, lembrando Mao TséTung, que quando uma faísca põe fogo num milharal de repente, em vez de olhar a faísca, você tem de olhar o milharal. Por que esse fogo pegou de forma tão repentina? A questão é olhar as condições que esse milharal apresentava. Uma das coisas que era óbvia para todo mundo era a condição de vida insuportável das cidades brasileiras. O transporte, sem dúvida nenhuma, é o primeiro ponto, porque ele afeta todo mundo, das camadas de mais baixa renda até as de mais alta renda, com exceção dos que andam de helicóptero. Então, você tem um aumento da imobilidade urbana, com um sofrimento muito maior dos que estão nos ônibus em pé, porque o transporte coletivo não tem sido prioridade ou nem mesmo tem tido, há 30 anos, qualquer atenção dos governos municipais, estaduais e federal. São 30 anos, desde o receituário neoliberal, que fez com que o País entrasse numa queda de crescimento econômico e desemprego alto, nas décadas de 1980 e 1990, e até hoje o transporte coletivo não é agenda no Brasil. Mas as cidades também não são. E constatei, até escrevi um artigo em março, que era preciso sair da perplexidade e passar para a ação, porque eu só via, andando pelo Brasil, que as pessoas estavam perplexas com a piora da qualidade de vida na cidade.
E, além do transporte e do trânsito, há a especulação imobiliária tomando conta das cidades. As empreiteiras de construção tomando conta, contra qualquer racionalidade, contra qualquer plano, diretriz ou plano diretor. Por uma crise de representatividade, sem dúvida nenhuma, as nossas instituições não perceberam que estava ficando insuportável. Particularmente no Rio de Janeiro, há a condição mais arbitrária de governo que a gente pode ver em relação à cidade, especialmente porque a Copa do Mundo e as Olimpíadas acrescentam alguns graus nessa febre que estamos descrevendo.
Por conta dos protestos, a presidenta Dilma Rousseff anunciou um plano nacional de mobilidade urbana. O que esse plano deve conter – e esse é um caminho para melhorar essa questão?
Sem dúvida, o pronunciamento dela foi bom. Ela não ficou falando de baderna, um conceito que na ditadura se usava muito. Foi sensível em perceber que alguma coisa está errada. Quando 300 mil pessoas saem às ruas, é como eu falei, não vamos olhar a faísca. Tem muito descontentamento. O Brasil tem leis e planos para fazer inveja ao mundo inteiro. Tenho sido chamada em vários países para falar sobre o Estatuto da Cidade, temos um novo arcabouço legal e institucional, como é o caso do Ministério das Cidades, da Conferência Nacional das Cidades, mas nada disso está funcionando. O ministério está nas mãos do PP, que é um partido especialista em obras. As cidades estão coalhadas de obras. E são obras que muitas vezes caminham até no sentido contrário do que deveria ser.
Por conta dos protestos, a presidenta Dilma Rousseff anunciou um plano nacional de mobilidade urbana. O que esse plano deve conter – e esse é um caminho para melhorar essa questão?
Sem dúvida, o pronunciamento dela foi bom. Ela não ficou falando de baderna, um conceito que na ditadura se usava muito. Foi sensível em perceber que alguma coisa está errada. Quando 300 mil pessoas saem às ruas, é como eu falei, não vamos olhar a faísca. Tem muito descontentamento. O Brasil tem leis e planos para fazer inveja ao mundo inteiro. Tenho sido chamada em vários países para falar sobre o Estatuto da Cidade, temos um novo arcabouço legal e institucional, como é o caso do Ministério das Cidades, da Conferência Nacional das Cidades, mas nada disso está funcionando. O ministério está nas mãos do PP, que é um partido especialista em obras. As cidades estão coalhadas de obras. E são obras que muitas vezes caminham até no sentido contrário do que deveria ser.
Veja bem, em São Paulo, nós temos uma ponte estaiada, onde não podem circular ciclistas, ônibus e pedestres. É o cúmulo. E ela foi feita contra a diretriz do Plano Diretor. As marginais do Tietê foram impermeabilizadas e ampliadas em mais de centenas de metros quadrados para absorver mais automóveis parados e jogando monóxido de carbono no ar, numa cidade que está adoecendo as pessoas, com o trânsito, com a poluição do ar. Portanto, o plano é importante, pelo menos o governo federal está assumindo [essa responsabilidade], já que os governos estaduais até agora não assumiram o transporte coletivo, especialmente nas regiões metropolitanas. O governo federal começa a perceber que a desoneração fiscal dos automóveis foi um desastre para as cidades. É importante, mas plano não basta.
Os urbanistas estão cansados de fazer planos que não são seguidos. Temos leis ótimas, por exemplo, sobre a questão da função social da propriedade, com a especulação imobiliária nadando de braçada contra a lei em muitos casos, com a flexibilização da lei. Depois de 40 anos na área urbana, depois de passar pelo setor público, de fazer pesquisa, de ser ativista, hoje não acredito em nada que funcione na esfera institucional se nós não estivermos nas ruas. Porque o capital, esse capital imobiliário, o capital das empreiteiras, da indústria automobilística, tem muita força. E essa força está ligada ao financiamento de campanha, não só, mas principalmente. Hoje, essa moçada não pode sair das ruas.
Em artigo recente, a senhora fala da necessidade de se sair dessa perplexidade e partir para a ação. Será que chegamos a esse momento, ou quais seriam essas ações necessárias para mudar as cidades?
Já chegou. Estou impressionada no efeito que essa mobilização teve. Se você olhar todas as agendas, elas já mudaram. Por quanto tempo, não sei, porque o Estado brasileiro tem capacidade também de absorver as lideranças dos movimentos sociais, com benesses, com cargos, com pseudopoder. Estamos vendo isso com vários movimentos que eram fortes há dez anos. O que mudou na agenda?
Em São Paulo, por exemplo, estava com uma licitação aberta para o transporte público, sem mudar o que é necessário, a estrutura desse transporte sobre rodas. Infelizmente nós temos uma rede de metrô ridícula, é preciso dizer que os tucanos – há 20 anos no governo do Estado de São Paulo – têm de responder sobre isso. Essa rede de trilhos é ridícula, e a curto prazo a questão é ônibus e corredor de ônibus. Veja que a licitação foi suspensa, e deveria estar fechada, por 15 anos, uma licitação que envolve R$ 43 bilhões. Nesse sentido, o prefeito de São Paulo [Fernando Haddad] não só ouviu as ruas em relação a essa licitação como ouviu também em relação ao túnel, que Kassab [ex-prefeito de São Paulo] entregou licitado para Haddad por R$ 2,4 bilhões. Ou seja, cerca de 50% do orçamento da Secretaria de Saúde num único túnel, em que o ônibus não circula dentro dele, só para carros.
Veja que a lei neste País não é nada, só se aplica em certas circunstâncias, quando é para punir os pobres, como a gente vê nos despejos, ou para premiar a corrupção. O túnel vai contra o Plano Diretor. Mesmo que seja uma lei específica de uma operação urbana, não pode contrariar a lei maior do Plano Diretor. O cancelamento do túnel é outra atitude que é vitória das ruas. O Congresso trabalhou como nunca, criou vergonha. Estamos vendo no Brasil inteiro medidas que estavam sendo postergadas, que estão finalmente sendo consideradas. Recebi uma carta da Associação Paulista dos Empreiteiros em Obras Públicas [Apeop], no começo das manifestações, propondo mais polícia e repressão.
Agora esse discurso acabou. Todo mundo está vendo que as pessoas estão sofrendo demais, que precisa resolver os problemas. De que é tudo pelo capital. Queria lembrar o que o Stédile [João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST] falou um termo talvez inadequado para uma professora acadêmica repetir, mas a verdade é que esta moçada está de “saco cheio” dessa forma de fazer política, de pessoas em quem a gente tinha esperança, e que acabam se subordinando a uma forma de vender a alma, uma condição aética. Precisamos recuperar esses valores. Precisamos disputar as mentes e corações desses jovens, para que tenhamos uma geração que nos próximos 20 anos lute contra a barbárie. Porque o que está acontecendo nas nossas cidades hoje é barbárie. Não dá para falar outra coisa. Temos uma disputa em que ou nós vamos botar dinheiro na Copa, para um capital que vem de fora, boa parte entra no país, drena recurso e vai embora, deixando uma situação de terra arrasada, com “elefantes brancos” como a gente viu acontecer na Grécia, na África do Sul e na China, com a prioridade em transporte de automóveis, ou nós vamos investir em transporte coletivo, saúde, educação, moradia. Não tem dinheiro para fazer as duas coisas. E existe uma certa esquerda que não vê luta de classes na cidade. Grande parte dos economistas não vê economia nas cidades, o que é um absurdo, porque a cidade é um dreno de recursos. Tem coisa que é um assalto, como esse túnel.
Será que estamos deixando de ser analfabeto urbanístico?
Há quantos anos escrevi isso… O desânimo já estava tomando conta da gente, como ninguém enxergava o óbvio? As câmaras municipais dominadas pelos lobbies . Mas agora ando esperançosa. Demos uma bufada de ar e temos de extirpar da política brasileira essas raposas que estão há décadas no poder. Apesar de que o Brasil teve alguma melhoria de vida para a baixa renda, que foi muito importante, mas não foi suficiente. Porque ainda somos o quarto país mais desigual da América Latina.
Os urbanistas estão cansados de fazer planos que não são seguidos. Temos leis ótimas, por exemplo, sobre a questão da função social da propriedade, com a especulação imobiliária nadando de braçada contra a lei em muitos casos, com a flexibilização da lei. Depois de 40 anos na área urbana, depois de passar pelo setor público, de fazer pesquisa, de ser ativista, hoje não acredito em nada que funcione na esfera institucional se nós não estivermos nas ruas. Porque o capital, esse capital imobiliário, o capital das empreiteiras, da indústria automobilística, tem muita força. E essa força está ligada ao financiamento de campanha, não só, mas principalmente. Hoje, essa moçada não pode sair das ruas.
Em artigo recente, a senhora fala da necessidade de se sair dessa perplexidade e partir para a ação. Será que chegamos a esse momento, ou quais seriam essas ações necessárias para mudar as cidades?
Já chegou. Estou impressionada no efeito que essa mobilização teve. Se você olhar todas as agendas, elas já mudaram. Por quanto tempo, não sei, porque o Estado brasileiro tem capacidade também de absorver as lideranças dos movimentos sociais, com benesses, com cargos, com pseudopoder. Estamos vendo isso com vários movimentos que eram fortes há dez anos. O que mudou na agenda?
Em São Paulo, por exemplo, estava com uma licitação aberta para o transporte público, sem mudar o que é necessário, a estrutura desse transporte sobre rodas. Infelizmente nós temos uma rede de metrô ridícula, é preciso dizer que os tucanos – há 20 anos no governo do Estado de São Paulo – têm de responder sobre isso. Essa rede de trilhos é ridícula, e a curto prazo a questão é ônibus e corredor de ônibus. Veja que a licitação foi suspensa, e deveria estar fechada, por 15 anos, uma licitação que envolve R$ 43 bilhões. Nesse sentido, o prefeito de São Paulo [Fernando Haddad] não só ouviu as ruas em relação a essa licitação como ouviu também em relação ao túnel, que Kassab [ex-prefeito de São Paulo] entregou licitado para Haddad por R$ 2,4 bilhões. Ou seja, cerca de 50% do orçamento da Secretaria de Saúde num único túnel, em que o ônibus não circula dentro dele, só para carros.
Veja que a lei neste País não é nada, só se aplica em certas circunstâncias, quando é para punir os pobres, como a gente vê nos despejos, ou para premiar a corrupção. O túnel vai contra o Plano Diretor. Mesmo que seja uma lei específica de uma operação urbana, não pode contrariar a lei maior do Plano Diretor. O cancelamento do túnel é outra atitude que é vitória das ruas. O Congresso trabalhou como nunca, criou vergonha. Estamos vendo no Brasil inteiro medidas que estavam sendo postergadas, que estão finalmente sendo consideradas. Recebi uma carta da Associação Paulista dos Empreiteiros em Obras Públicas [Apeop], no começo das manifestações, propondo mais polícia e repressão.
Agora esse discurso acabou. Todo mundo está vendo que as pessoas estão sofrendo demais, que precisa resolver os problemas. De que é tudo pelo capital. Queria lembrar o que o Stédile [João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST] falou um termo talvez inadequado para uma professora acadêmica repetir, mas a verdade é que esta moçada está de “saco cheio” dessa forma de fazer política, de pessoas em quem a gente tinha esperança, e que acabam se subordinando a uma forma de vender a alma, uma condição aética. Precisamos recuperar esses valores. Precisamos disputar as mentes e corações desses jovens, para que tenhamos uma geração que nos próximos 20 anos lute contra a barbárie. Porque o que está acontecendo nas nossas cidades hoje é barbárie. Não dá para falar outra coisa. Temos uma disputa em que ou nós vamos botar dinheiro na Copa, para um capital que vem de fora, boa parte entra no país, drena recurso e vai embora, deixando uma situação de terra arrasada, com “elefantes brancos” como a gente viu acontecer na Grécia, na África do Sul e na China, com a prioridade em transporte de automóveis, ou nós vamos investir em transporte coletivo, saúde, educação, moradia. Não tem dinheiro para fazer as duas coisas. E existe uma certa esquerda que não vê luta de classes na cidade. Grande parte dos economistas não vê economia nas cidades, o que é um absurdo, porque a cidade é um dreno de recursos. Tem coisa que é um assalto, como esse túnel.
Será que estamos deixando de ser analfabeto urbanístico?
Há quantos anos escrevi isso… O desânimo já estava tomando conta da gente, como ninguém enxergava o óbvio? As câmaras municipais dominadas pelos lobbies . Mas agora ando esperançosa. Demos uma bufada de ar e temos de extirpar da política brasileira essas raposas que estão há décadas no poder. Apesar de que o Brasil teve alguma melhoria de vida para a baixa renda, que foi muito importante, mas não foi suficiente. Porque ainda somos o quarto país mais desigual da América Latina.
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