por Patrick Luiz Sullivan De Oliveira* —
O Uber se apresenta como um fenômeno da “economia compartilhada”, mas a ideia é desonesta. O aplicativo nada mais é do que uma empresa agressiva tentando maximizar seus lucros
Fotos: Fernanda Carvalho / Fotos Públicas
Protesto de taxistas em frente à Câmara Municipal de São Paulo contra a Uber
Recentemente, taxistas em cidades espalhadas pelo país foram às ruas para protestar — em certos casos violentamente — contra a introdução do Uber no Brasil. Na França a situação foi ainda mais extrema, com carros pegando fogo e a Uber por fim decidindo suspender o seu segmento mais low-cost no país dos gauleses.
Simpatizantes do Uber criticaram severamente os taxistas (e os reguladores, que não andam satisfeitos com o fato de que o serviço não cumpre as normas estabelecidas para o transporte de passageiros). Dizem que eles querem barrar a competição e manter o monopólio de passageiros, que não são nada mais do que uma classe corporativista reacionária com medo de perder os seus privilégios.
Mas as coisas não são tão simples assim.
O Uber não é nenhuma panaceia, muito menos uma empresa beatificada. Através de um marketing engenhoso, companhias multibilionárias do Silicon Valley apresentam para seus consumidores uma autoimagem positiva e utópica que é extremamente tentadora nesses tempos econômicos tenebrosos.
O Uber diz que faz parte de um novo fenômeno, o da “economia compartilhada” — um termo que conjura a imagem de pessoas alegres e bem dispostas ajudando umas às outras, todas ganhando uma parcela justa no processo. Mas a ideia de que o Uber enquadra-se nesse conceito de “economia compartilhada” é desonesta, pois o aplicativo nada mais é do que uma empresa extremamente agressiva tentando de tudo para maximizar seus lucros.
Talvez seja até o melhor exemplo que temos atualmente de um capitalismo desenfreado abastecido por enormes reservas de capital que primeiro destroem a competição para depois monopolizar o mercado (o exemplo da Amazon). Com um exercito de lobistas e de advogados o Uber vem penetrando mercados de maneira beligerante, curvando governos municipais aos seus desejos e colecionando multas por não dar ouvido aos reguladores.
Muitos já falaram sobre os benefícios que o Uber supostamente traz, então talvez seria hora de dar voz a algumas criticas que precisam ser tomadas em consideração para o debate progredir de uma forma realmente honesta.
Do lado do consumidor temos a questão da regulamentação, principalmente no quesito da segurança. Como a história dos séculos XIX e XX demonstra, não podemos contar com o “mercado” para arcar os custos sociais dos avanços industriais e tecnológicos. As condições de trabalho dos mineradores — com seus pulmões tachados de preto — não melhorou por livre e espontânea vontade das mineradoras. E as industrias químicas não começaram a lidar com o lixo toxico de uma maneira mais segura para o meio ambiente e para as seus vizinhos só porque são conscientes.
Seria ingênuo esperar que o Uber resolveria questões relativas a inspetorias de veículos, paliação do risco sofrido por passageiros, motoristas e pedestres, emissão de gazes, entre outras.
Quem é legalmente responsável no caso de um acidente envolvendo um carro da Uber?
Fica também a dúvida quanto a ética do sistema de “surge pricing” (onde os preços aumentam simultaneamente com a demanda) adotado pela empresa. O Uber foi criticado severamente quando seus preços explodiram durante o sequestro em massa que ocorreu dezembro passado em Sidney (o preço mínimo para usar o serviço subiu para $100).
Tudo isso demonstra que o serviço insere-se em um complexo sistema de transporte publico — um problema de política urbana que deveria ser sujeito a deliberação de todos os partidos afetados.
Podemos também analisar a situação pelo ângulo da classe trabalhadora. Nos Estados Unidos, a cada dia cresce o descontentamento dos motoristas do Uber. Eles têm visto o seus percentuais de lucro cair, mesmo continuando em ter que arcar com todos os riscos envolvidos em prestar um serviço de transporte.
Inclusive, essa exímia empresa da “economia compartilhada” foi acusada de surrupiar gorjetas que clientes deixavam aos motoristas. (Não menos preocupantes é como a empresa manuseia os dados privados de seus usuários, ainda mais depois que um de seus executivos sugeriu usar essas informações para vendetas contra jornalistas que fizeram reportagens que não foram favoráveis à imagem do Uber).
Esses fatores explicam porque nos EUA temos um crescente movimento para que os motoristas deixem de ser autônomos e virem empregados. Não podemos esquecer que o Uber é parte de um processo que anda ganhando força nessa economia global onde os termos são ditados pelo capital financeiro: a criação de uma classe maior desubempregados cada vez mais dependentes de bicos aqui e ali para sobreviver enquanto os lucros dos investidores crescem a níveis exorbitantes.
O CEO do Uber, Travis Kalanick, acusou os críticos do aplicativo de quererem “parar o progresso”. Isso nada mais é do que uma estratégia retórica que busca marginalizar aqueles que não compartilham a visão (e os lucros) das elites industriais, tecnológicas e financeiras.
Como o historiador François Jarrige demonstra em seu livro Techno-critiqes: Du refus des machines à la contestation des technosciences (Paris: La Découverte, 2014), esse discurso marginalizador nasceu junto com a Revolução Industrial e consolidou-se na Belle Époque, justamente o período em que surgiram os grandes barões do industrialismo e um movimento trabalhista que buscava uma segurança social melhor e salários mais dignos ante uma desigualdade crescente.
Hoje, em 2015, temos a Uber estimada em mais de 40 bilhões de dólares, o seu CEO comseus 5.3 bilhões de patrimônio e seus motoristas autônomos (“driver partners”, de acordo com a “novilíngua” do Silicon Valley) — esses últimos cada vez mais desiludidos com o potencial econômico de um trabalho instável ao mesmo tempo em que ameaçam o ganha pão de milhões de taxistas pelo mundo.
São justamente as vozes mais criticas que demonstram que o “progresso” pode seguir caminhos diversificados. Podemos “des-inventar” certas inovações que se mostraram perigosas, como o DDT e o CFC, e podemos procurar maneiras de orientá-las em direções mais positivas e seguras, como vem sendo o caso da energia nuclear.
A ideologia que brota do Silicon Valley apresenta a tecnologia como uma coisa inerentemente positiva ou, na pior das hipóteses, neutra. Mas a tecnologia nunca é imune a dinâmicas de poder. O “progresso” não é alcançado através de inovações tecnológicas, mas sim graças a escolhas políticas de como (e se) incorporaremos essas inovações dentro do nosso complexo mundo social.
Se uma introdução ética de novas tecnologias na sociedade depende de um diálogo democrático, porque ao invés de aceitar o Uber como um fait accompli não considerarmos a ideia de Mike Konczal? Um Fellow no Roosevelt Institute, Koczal sugeriu socializar o aplicativo, lembrando que os populistas americanos criaram cooperativas para lidar com as mudanças tecnológicas no final do século XIX.
Afinal, os motoristas já são donos de quase todo o capital operacional (os seus carros), então porque não distribuir o lucro de maneira comparável? Aí sim, poderíamos dizer que o aplicativo fomenta uma verdadeira economia compartilhada. Mas se o Uber não quer empregar motoristas, que seja então apenas uma provedora de software.
* Patrick Luiz Sullivan De Oliveira é doutorando em História da Princeton University
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