quinta-feira, 16 de julho de 2015

Facebook, versão virtual do subúrbio americano?

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Subúrbio de Miami, EUA
Como no projeto urbanístico que marcou EUA no pós-guerra, rede social oferece sensação de homogenidade. Pobre desejo, que nos afasta do que vida urbana tem de mais fascinante: o encontro com o outro
Por Ana Paula Assis, na Piseagrama, parceira editorial de Outras Palavras

Piseagrama
 é a única publicação sobre espaços públicos — “existente, urgentes, imaginários” — no Brasil. Nascida em Belo Horizonte em 2010, quando venceu o edital Cultura e Pensamento do Ministério da Cultura, mantém-se hoje com apoio dos leitores. Impressa, é publicada a cada semestre. Na loja virtual de Outras Palavras, é possível assiná-la, comprar edições anteriores e adquirir de bolsas, camisetas, adesivos e cartazes com propostas para outros projetos de cidades. 
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No dia 5 de maio de 2011 o New York Times anunciava, sob a manchete “The Tupperware Party Moves to Social Media”, a decisão da tradicional marca de vasilhames de explorar as novas redes sociais como estratégia de marketing e vendas. O anúncio provavelmente teria passado despercebido, mas o fato de trazer, no mesmo enunciado, dois universos de convivência tão desconectados no tempo e no espaço me pareceu irônico e, por isso mesmo, merecedor de uma reflexão. Uma reflexão em torno das relações de proximidade estabelecidas nessas novas redes sociais juntamente com um produto ou marca que, a seu tempo, se tornou símbolo de um modelo de vizinhança paradigmático que teria uma grande influência na conformação ainda pouco amadurecida das cidades brasileiras: o subúrbio norte-americano.
Em 1947, Earl Silas Tupper, inventor e químico da DuPont, desenvolveu um sistema de vedação à prova de ar e água, derramamento e deterioração, que seria usado para o armazenamento de comida. A sua invenção, batizada de “Tuper Seal”, passou a ser aplicada a uma linha de vasilhames de polietileno produzida pela empresa nos anos anteriores. Os Tupperware, assim batizados, logo viriam a se tornar um símbolo do american way of life dos anos 50.
O lançamento desse produto no mercado coincidiu com um cenário pós-guerra, pré-feminista e de afirmação dos subúrbios como um modelo de vizinhança, aprovado por grande parte da população americana, que abandonou os centros urbanos em troca da promessa de um ambiente adequado ao cotidiano da família, livre da indesejada convivência com grupos ou indivíduos que não se encaixavam no perfil de normalidade estabelecido pela sociedade.
Os pioneiros Tupperware tiveram uma curta temporada de vendas nos grandes magazines americanos antes de serem retirados do mercado para poderem ser adquiridos apenas em encontros organizados entre as donas de casa de uma mesma comunidade: as Tupperware Parties.
TEXTO-MEIO
Brownie Wise, uma mãe divorciada vinda do interior e com um estilo de vida um pouco distante do ideal feminino da mulher americana dos anos 50, foi a responsável pela criação da estratégia de marketing da marca, que alcançaria cifras de centenas de milhões de dólares por ano. Tudo começou com um telefonema à fábrica, no qual a senhora Wise – que costumava vender eletrodomésticos, panelas e vassouras em casa –, irritada com o atraso na entrega de suas encomendas, insistiu em conversar pessoalmente com o Sr. Tupper, presidente da marca. Ao perceber que a insolente reclamante era uma revendedora autônoma que, sozinha, tinha alcançado vendas maiores do que qualquer um dos grandes magazines, o senhor Tupper decidiu contratá-la para uma transformação no modelo de comercialização dos seus produtos.
Ms. Wise iniciou então o seu projeto de recrutamento de colaboradoras. A oportunidade de se ter renda própria, trabalhando em casa e com um horário flexível que não prejudicasse as funções de mãe e esposa foi suficientemente atrativa para conquistar adeptas de todo país. Em pouco tempo, Ms. Wise liderou um crescente exército de vendedoras sustentado por uma rede de cooperação e vizinhança, distinta do competitivo e agressivo marketing associado ao tradicional modelo masculino de negócios. Logo, as Tupperware Parties tomam conta dos subúrbios. Nas animadas tardes só para mulheres, entre receitas, drinks e dicas de como armazenar melhor o jantar do marido, muitas encontraram uma boa remuneração, fato que configurou, segundo estudiosos, o princípio de uma autonomia feminina no mercado de trabalho.
Alguns anos mais tarde, esse mesmo projeto não ofereceu entusiasmo ao movimento feminista, então latente. Muitas mulheres entenderam que tal modelo de trabalho reforçava estereótipos femininos suburbanos, por representar uma espécie de desvio do propósito que buscava igualar as condições e oportunidades do trabalho feminino às dos homens. Além disso, as feministas argumentaram que a exploração econômica das redes de vizinhança e família era extremamente destrutiva, uma vez que se sustentam pela comercialização das relações afetivas.
Mas o incremento das vendas a níveis que escapavam à compreensão dos executivos formados nas business schools fez com que o sucesso alcançado pela Srta. Wise confrontasse a precária situação feminina no mundo dos negócios na época. Em 1954, ela se tornou a primeira mulher a aparecer na capa da Business Week Magazine. Com seu Cadilac pink e os seus característicos vestidos de renda, Wise era a personificação do sonho de liberdade de grande parte das mulheres americanas.
Ela foi demitida do cargo em 1958, aparentemente devido à puritana desaprovação do Sr. Tupper ao seu estilo de vida independente. Mas a estrutura operacional criada por ela já tinha autonomia e começava a se espalhar para outros continentes.
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Condomínio em São José do Rio Preto-SP

As Tupperware Parties tornaram-se bastante populares no mundo todo, assim como o modelo de expansão dos subúrbios, ambiente que parece ter sido perfeito para a organização dessas festas. Em 1963, a empresa chegou à Europa, Japão e Austrália. No Brasil, as primeirasTupperware Parties datam dos anos 70, época em que também apareceram por aqui os primeiros condomínios horizontais fechados. O AlphaVille Residencial, ícone pioneiro dessa tipologia, foi lançado em 1975.
Os subúrbios americanos surgiram nos anos do pós-guerra, alavancados por um movimento de revisão dos valores e da família e por um déficit habitacional que, a princípio, foi associado às novas famílias formadas pelos jovens veteranos da guerra. A partir de então, a população americana testemunhou uma mudança significativa no conceito de moradia e vizinhança. A crescente demanda por moradia, juntamente com as políticas públicas de incentivo ao mercado imobiliário suburbano, aceleraram a indústria da pré-fabricação e impulsionaram a rápida expansão e afirmação dos subúrbios. A produção em série de subúrbios como Levittown e Park Forest redefiniram os antigos modelos de espaço público com a nova estética da pré-fabricação e da propriedade privada inserida num espaço coletivo contínuo. Em Lewittown, as taxas de produção alcançaram 30 casas por dia em julho de 1948.
Como um modelo de moradia e convivência sem precedentes na história das cidades, o empreendimento suburbano encontrou suporte numa ideologia política e estética associada a conceitos de eficiência e assepsia, não somente no planejamento espacial, como também no plano social. Os subúrbios parecem ter sido especialmente desenhados para a típica família branca de classe média americana. Grupos sociais fora desse perfil não encontrariam as mesmas facilidades ou qualquer tipo de identificação. Os modelos das casas propostos pelo Federal Housing Administration apresentavam uma tipologia única e segregadora, de arquitetura exclusivamente voltada para as famílias nucleares, razão pela qual eram excluídos grupos sociais como os solteiros, casais sem filhos e idosos. Já os mecanismos de controle étnico dos subúrbios eram menos discretos.  Em Levittown, uma cláusula contratual restritiva estipulava que as casas somente poderiam ser vendidas ou alugadas para “membros da raça caucasiana”.
Entre os equipamentos que compunham o convidativo conjunto dos subúrbios estavam as novas escolas públicas aclamadas nacionalmente, a facilidade de conexão com a cidade por um eficiente sistema de trens e railways, os modernos centros comerciais, os playgrounds, igrejas e sinagogas, dispostas sobre os intermináveis jardins coletivos.
Somados à sedução dos baixos impostos, esses fatores configuravam um cenário atrativo o suficiente para justificar a adesão de milhões de famílias americanas nos anos 1950. No entanto, por trás dessa aparente liberdade de escolha, os baixos juros cobrados no financiamento das casas suburbanas e as hipotecas garantidas pelo governo atestavam que o sucesso da empreitada era patrocinado por um projeto político que almejava a liberação das cidades para a implementação dos projetos federais de renovação urbana.
No Brasil, o modelo de expansão periférica das cidades que mais se aproxima dos subúrbios americanos são os já citados condomínios horizontais fechados. Mas, nesse contexto de transposição, há que se considerar o frágil equilíbrio das nossas cidades, assoladas por um conflito social muito mais dramático do que o das cidades americanas.
O conflito vivenciado no Brasil faz com que as palavras violência e segurança funcionem como passe de mágica na construção das arquiteturas mais contraditórias de que se tem notícia. Em essência, os nossos condomínios fechados, “enclaves fortificados”, definem relações de vizinhança bastante diversas do seu modelo de inspiração. Os moradores dos subúrbios americanos compartilham um sentimento coletivo de pertencimento a um grupo social coeso e aparentemente bem integrado, sentimento este que justifica críticas: a aparente monotonia dos padrões e comportamentos dos seus integrantes.
No caso brasileiro, a migração das classes média e alta para os condomínios fechados, em porcentagens muito inferiores, foi motivada principalmente pela busca da segurança prometida pelos muros fortificados. Muitos desses condomínios trazem também a proposta de um isolamento campestre, que garante, no seu projeto de urbanização paisagística, o equivalente aos metros quadrados de jardim coletivo suburbano sob a forma de coeficiente em área de preservação da vegetação nativa.
Mas a lógica do isolamento fortificado não se limitou apenas aos condomínios periféricos. Podemos verificar, com lamentável frequência, o mesmo princípio de segregação aplicado aos edifícios particulares que inevitavelmente colaboram com a conformação do espaço público das nossas cidades. Dessa maneira, estabelecem-se os princípios de convivência contraditórios que caracterizam as cidades brasileiras e que têm como principal consequência a deterioração qualitativa do espaço das cidades como local de convivência e trocas.
E é nessa esfera das convivências e trocas que o deslocamento dasTupperware Parties para as redes sociais inspira uma reflexão sobre o novo ambiente de vizinhança surgido quase meio século depois da exportação endêmica do modelo suburbano. As redes de convivência no facebook se consolidam sob o argumento promissor de uma cartografia que eliminaria as limitações espaciais e reconfiguraria o território virtual segundo critérios democráticos de afinidades que poderiam ser confortavelmente operados pelo usuário, construtor do seu espaço público. Trata-se, obviamente, de uma categoria bastante particular de espaço público, cuja grande conquista parece ter sido a exclusão do corpo físico e de todas as limitações a ele associadas. Essa exclusão permite estabelecer os novos parâmetros de proximidade e vizinhança.
Diante da metáfora do espaço público aplicada ao espaço virtual seria possível dizer, também metaforicamente, que aos usuários das redes sociais cabe o papel de articuladores de seu próprio espaço público. As ferramentas disponibilizadas pelo sistema permitem selecionar o perfil dos frequentadores do seu círculo de amizades, bem como erradicar da sua porção particular de espaço público qualquer manifestação que não esteja de acordo com os padrões estabelecidos pelo administrador. Esse movimento constante de construção e manutenção do espaço de convivência em seu estado ideal reproduz, ainda que remotamente, as ações dos urbanistas ortodoxos dos subúrbios e dos enclaves condominiais em seu esforço de ordenação asséptica do território.
Nem os subúrbios e condomínios, nem as inovadoras redes sociais se aproximam do que há de mais instigante no modelo de vizinhança aparentemente caótico das cidades reais: o privilégio do encontro com o outro. Um outro que é em essência diferente de mim, e que me confronta regularmente com uma demanda de reposicionamento, adaptação e afirmação diante do coletivo. Nos dias de hoje, com todos os avanços das telecomunicações, que permitem modos de vida, trabalho e relacionamento desvinculados da condição de proximidade física, viver na cidade deveria ser uma escolha. E, como em toda escolha, há que se entender o que está em jogo antes de realizá-la. Viver na cidade significa conviver com o outro, com a diversidade – e é sob esse paradigma que seus habitantes deveriam optar ou não pelo modelo de moradia e vizinhança urbana.
Condomínios e facebook em coexistência com a metrópole contemporânea poderiam configurar alternativas de vizinhanças diversas, possíveis escapes para a intensidade da convivência urbana, e não o contrário. Não se pode esperar da metrópole a garantia Tupperware de vedação contra vizinhos incovenientes, e nem o acondicionamento perfeito dos seus habitantes em recipientes separados e rotulados numa logística de reconhecimento e identificação que vai um bocado além da cartela de cores disponibilizada à clientela das Tupperware Parties

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