Maristela Bleggi Tomasini
Do sítio São Paulo Trem Jeito de 12/10/2016
Usuários de trens metropolitanos formam a maior e a potencialmente mais forte
massa numérica que se movimenta diariamente por boa parte das cidades que compõem
a Grande São Paulo. Mas, em que pese a expressão de seu número, sequer chegam a
constituir um público. Ao contrário dos usuários do metrô ou mesmo dos clientes de
companhias aéreas, precisam contar com tragédias de monta para que, durante algum
tempo ao menos, alguém preste atenção à linha férrea e ao que nela acontece
diariamente. Uma morte, um acidente, um assalto, um roubo, um arrastão, uma escada
rolante que não funciona, uma cadeira de rodas que não consegue ser alçada a um carro,
um passageiro que cai no vão entre a plataforma e o trem, enfim, fatos que, tivessem
eles lugar num aeroporto ou numa estação do metrô, prontamente seriam alvo de
imediata atenção, com pronto reparo de eventuais danos.
Com os trens metropolitanos, todavia, isso não acontece.
E por que é assim? Pelo fato de ser um modal de uso suburbano, com usuários
condenados à exclusão? E isso, em pleno tempo dos discursos pela mobilidade urbana e
pela integração dos modais?
Enquanto a bicicleta e seus usuários ― nada mais “classe média” do que esses
dispendiosos equipamentos sobre os quais desfilam roupas de grife ― recebem, a cada
domingo que amanhece na cidade de São Paulo, especial atenção com reserva de vias
exclusivas para passeio, o usuário de trens continua sub urbanizado. Torna-se um sub
cidadão, inferiorizado diante de outros habitantes da mesma urbe pela qual se move.
Será que os donos de bicicletas se mobilizaram e por isso conseguiram atenção
dos poderes públicos? Ou será que, justamente por se tratarem, em boa parte, de pessoas
conscientes de seus direitos graças a sua maior escolaridade e renda, souberam melhor
exercer suas prerrogativas individuais com evidente reflexo social? Seja pelo motivo
que for, fato é que deixaram de ser massa indiferenciada e passaram a constituir um
público, tratado como tal e com plena integração de seu modal na urbe, na cidade que,
por sua vez, se adéqua a este usuário, concedendo-lhe um espaço privilegiado e
impondo, aos demais modais, que se ajustem a este espaço das bicicletas e para as
bicicletas, respeitando-o e efetivando-o plenamente no ir e vir da cidade.
A cidade.
A cidade tem sido objeto de contemplação, especialmente intelectual, nestes
tempos pós-modernos. Não que não fosse antes, pois cidades famosas são abundantes
ao longo da história, tão importantes que não raramente assumem significado ainda
maior que o país no qual se localizam. Mas vivem-se hoje tempos de colapso dos velhos
sonhos nacionais. Além disso, o espaço se fragmenta e se faz virtualidade. Nossa
existência acontece cada vez mais no tempo e em tempo real, de sorte que as cidades
voltam a ser, como eram nos tempos da Grécia Antiga, a verdadeira fonte onde o
indivíduo busca seu ethos citadino, a sua pertinência, a sua identidade. O gosto de ser
paulistano ou parisiense é efetivo. Somos cidadãos de cada uma de nossas cidades.
Porque é na cidade que existimos, nascemos, vivemos, morremos e, sobretudo,
circulamos.
O ir e vir das cidades imprime ao tempo um andar vertiginoso. O relógio comanda
nossa existência em minutos, e a cada intervalo deles um trem vai e vem de algum lugar
para outro lugar, com centenas de vidas em suas entranhas. Isso é mobilidade urbana.
Ao menos poeticamente. Trens, como metrôs, como motos, como ônibus, como
veículos particulares, todos se movem na cidade que cada vez mais se comprime para
que esses mesmos trens, metrôs, motos, ônibus, veículos particulares, para que todos
possam, enfim, continuar a mover-se. A cidade se expande e se contrai. Ela é um
projeto, sempre um vir a ser. Tem uma dinâmica que reclama harmonia, sob pena de
que se desumanize.
Para que não se desumanize, é preciso que se democratize. E isso não é apenas um
jogo de palavras ou o efeito de um discurso. É preciso enfrentar as questões da
exclusão, da superlotação nos transportes públicos, das crises de mobilidade, e o quanto
antes.
Mobilidade urbana não é uma questão técnica, que se resolva pela equação custobenefício,
numa aritmética rasa de lucro ou prejuízo a partir de uma lógica empresarial.
Tampouco é uma questão puramente legal, pois leis se destinam a pessoas, que são seus
sujeitos e seus intérpretes.
Mobilidade urbana é uma questão política.
Mas política de ação, não de discurso.
E, se as cidades estão em pauta, sob muitos aspectos, a questão do transporte é
prioritária, senão mesmo urgente.
A Lei 12.587/12 tem em vista a construção de uma política de mobilidade urbana
a partir da instituição de diretrizes que, ao menos teoricamente, devem fazer com que o
espaço urbano se democratize. Esta democratização começaria pela prioridade que a lei
confere ao transporte público coletivo. Uma vitória, finalmente, ao soar de uma meia-noite
que demorou muito para chegar, e que nos deixou diante de abóboras e de ratos
após décadas de carruagens douradas movidas à gasolina e exigindo passarelas
atapetadas com asfalto.
Democratização do espaço urbano.
O que isso quer dizer? Isso significa que a democracia também se estende a
veículos não motorizados e que visa à integração de todos os modais: trem, metrô,
ônibus, bicicletas. Sim, não é por acaso que bicicletas entram no metrô. Esta prática
materializa um conceito de acessibilidade e corrobora uma política ambiental que deseja
reduzir a poluição.
Quer-se uma cidade democrática, acessível e limpa.
Quer-se colocar em prática uma previsão de ordem constitucional, conferindo uma
função social à cidade e garantindo o bem-estar de seus habitantes.
Todavia, o acesso universal a esta cidade pressupõe a existência de uma Política
Nacional de Mobilidade Urbana, democraticamente gerida através da coordenação e da
organização dos modos de transporte, de serviços e de infraestruturas que garantam a
mobilidade de pessoas e de cargas.
As diretrizes dessa política têm previsão legal, bem como seus objetivos, dentre os
quais merece destaque a redução das desigualdades, a inclusão social, o acesso aos
serviços básicos e equipamentos sociais. Palavras bonitas. Mas ainda assim, soam sem
sentido numa cidade periférica, numa estação de trens lotada em final de tarde, numa
localidade sem acesso, estagnada, extirpada da oxigenação que circula nas metrovias e
nos aeroportos.
Por que trens precisam ser assim, com seus passageiros constrangidos a uma
exclusão quase marginal?
A obrigatoriedade de um plano de mobilidade para cidades com população acima
de 20 mil habitantes significou um grande progresso, se considerarmos o parâmetro
anterior que impunha a existência de planificação apenas para cidades com população
acima de 60 mil. Entretanto, a participação democrática é essencial, e aí entra a
sociedade civil, em última análise, a principal interessada em que se processem
mudanças urgentes nos atuais modelos de transporte público, que não prescindem da
formação de uma nova mentalidade.
Sem debates, sem participação, sem tomada de consciência relativamente a
direitos e deveres, nada se efetiva, de sorte que a chamada política de mobilidade teria
existência limitada aos discursos e aos textos legais. Conferir efetividade aos direitos é
conferir cidadania ao sujeito desses direitos, à pessoa a quem se destina, não apenas o
transporte, mas a norma garantidora do acesso deste cidadão a um serviço pelo qual ele
paga. A integração dos modais, a construção de ciclovias, bicicletários para guarda
temporária destes veículos, a construção de espaços seguros e a qualificação do
transporte coletivo são ações que devem torná-los mais atraentes ao público, de modo
que se caminhe na direção contrária ao individualismo.
Contudo, ser favorável ao transporte público coletivo e defender sua completa
priorização relativamente ao transporte individual passa, necessariamente, pela
conscientização pessoal, individual. Um público, tornado consciente de seus deveres e
de seus direitos, reivindica e exerce suas prerrogativas de cidadão. E o faz não apenas
quando desfruta individualmente de seu automóvel, mas também quando diz não ao
abuso, quando exercita suas prerrogativas, quando registra sua inconformidade.
Bens e serviços oferecidos não consistem em dádivas ou favores, mas em direitos
que devem ser efetivados a cada bilhete vendido, a cada abrir e fechar de portas, a cada
deslocamento do ponto A ao ponto B, desde a entrada na estação até a saída do usuário
do interior desta última. Quando o usuário não merece respeito da empresa que o
transporta, ainda mais quando essa empresa é cessionária do Estado, essa mesma atitude
da empresa vai se refletir também no trabalhador que presta o serviço de transporte,
tanto quanto no tomador desses serviços. Ambos margeiam este status de segunda
classe, [sub]urbano, padecendo da mesma [sub]urbanidade.
Importa não se conformar a tanto, reagindo a esse processo de massificação que,
em última análise, a tantos nega a cidadania, obstruindo seu exercício.
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