sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

OPINIÃO: Cidades e soluções

Diário do Transporte

Nas típicas cidades americanas, onde a maioria das pessoas, além de possuir seus próprios carros, sofre da irresistível tentação de dirigi-los todo o tempo, se você quiser fazê-las caminhar será preciso, antes de qualquer coisa, convencê-las de que andar a pé é tão bom ou melhor que dirigir. Significa, sendo mais claro, que você precisa oferecer a elas, simultaneamente, quatro bons argumentos para isso: (1) há uma razão adequada para caminhar, (2) caminhar é seguro e te faz se sentir em segurança, (3) caminhar é confortável e (4) caminhar é interessante. (Jeff Speck, urbanista)

ALEXANDRE PELEGI
Nada impacta mais o sistema de transporte público coletivo que a distribuição caótica e sem qualquer planejamento das cidades. A má distribuição das habitações pelo tecido urbano, que empurra as populações de menor poder aquisitivo para cada vez mais longe dos locais de emprego é um dos exemplos cruéis e emblemáticos das consequências produzidas por essa anarquia. Obrigados a percorrer longos trechos para alcançar não apenas o trabalho, como muitos dos serviços públicos essenciais, como saúde e educação, as classes de menor renda sofrem uma penalização adicional: menos tempo com a família, menor proteção social, maior desgaste físico e mental, situações que tornam a vida nas cidades um tormento crescente.
A produção de bairros-dormitórios em formato de guetos é o retrato nu e cru de um “benefício” produzido por governos sob a única interpretação de que se atua para diminuir o déficit habitacional. Não bastasse isso, a má qualidade das unidades produzidas pelo principal programa governamental, “Minha Casa, Minha Vida” (voltado a famílias que ganham até 1.800 reais), chega a ser uma espécie de castigo adicional às populações de menor renda nas metrópoles: perto de 50% das unidades produzidas entre 2011 e 2014 apresentaram problemas construtivos; 10% com falhas graves, que comprometem as condições de uso e segurança (matéria do “Estadão”). Uma verdade inconveniente, como lembra a urbanista Raquel Rolnik: “o Estado destruiu qualquer política de moradia que não fosse o fomento à compra da casa própria”. Política de moradia entenda-se como políticas urbanas de inclusão na cidade, e não o oposto.
Dizia-se num passado não muito distante que “quem casa, quer casa”. Este e outros provérbios prevaleceram por muitos anos no imaginário popular, nos tempos em que o fenômeno da urbanização ainda não era o gigantesco problema que temos hoje. Nos anos 80 um entusiasmado governador, ao entregar as chaves de uma casa popular a uma família de baixa renda, disse que essa era a maior conquista que se podia ter: “agora vocês poderão dizer que da porta para dentro tudo é de vocês, do chão ao teto, de parede a parede”. Olhando ao redor podia-se ver que ali havia apenas casas, muitas casas, distantes de creches, unidades de saúde, escolas de ensino fundamental. Como lembra Rolnik, os mais pobres passaram a ter acesso a empréstimos bancários que garantiam a entrada deles no mercado imobiliário, mas ao mesmo tempo sofreram sua quase expulsão da vida na cidade.
O arquiteto Washington Fajardo já alertava, em julho de 2016, em artigo no jornal O Globo, que o programa “Minha Casa Minha Vida” era “um programa de estímulo econômico, com foco em médias e pequenas empreiteiras, que têm como um produto a moradia; em geral, longe dos centros urbanos, onde a terra é barata. É realizado sem nenhuma qualidade espacial, mantendo longas jornadas de viagem até o trabalho, replicando a exclusão por gerações”.
Com a crise econômica recente um novo problema se juntou aos anteriores: a inadimplência nos programas habitacionais, que hoje atinge a marca de 28% em cidades como Rio, São Paulo, BH, Salvador, Fortaleza e Baixada Santista.
Dentre os custos que impactam e colaboram fortemente para a inadimplência estão os custos dos transportes, “devido à localização periférica e precariedade da infraestrutura urbana, reduzindo a renda disponível para pagar pela habitação”, segundo informa Claudia Magalhães Eloy, doutora em urbanismo, em artigo no Valor Econômico.
Claudia Magalhães lembra que a definição do valor das prestações “ignora quesitos importantes – renda per capita, vulnerabilidade social e custo de vida da região – produzindo ineficiências com a cobrança de prestações aquém do que a família pode realmente pagar, desperdiçando escassos recursos públicos, e injustiças pela cobrança de valores que outras famílias, de fato, não dispõem”.
O descompasso existente entre os entes federativos coloca sempre o município na ponta da corda. Vítima das principais consequências de políticas macroeconômicas ditadas pela União, as cidades têm sofrido continuadamente graças aos equívocos cometidos por muitos dos programas federais e estaduais. Como exemplo recente tem-se as políticas de incentivo à compra de automóveis, que entupiram ruas e avenidas trazendo em seu bojo resultados perigosos não somente para a saúde pública e a questão ambiental, como para a redução dos já exíguos espaços públicos, transformando-os em meros espaços de “passagem”. Os programas habitacionais produziram estrago similar, ao pressionar os custos dos transportes e tornar a gestão das cidades cada vez mais improváveis e caras. Como lembra Fajardo, “será com o acesso à cidade e seus benefícios, acesso à diversidade, ao capital humano, ao conhecimento, à cultura e aos serviços públicos, ao atrito que forja a urbanidade, que poderemos romper o círculo que gera e regenera o abismo social”.
Se os prefeitos não começarem a questionar as políticas federais, invertendo o jogo político, as cidades se tornarão cada vez mais ingovernáveis. E com a crescente urbanização não haverá possibilidade de retorno: o inchaço produzirá despesas crescentes, impactando os cofres municipais a tal ponto que não restará verba suficiente nem mesmo para as mínimas ações de zeladoria. Atrair o poder privado, com ações criativas e momentâneas, pode ser um paliativo, mas jamais será uma solução, antes pelo contrário. A corda continuará a ser esticada, e o cidadão continuará a ser tratado como vítima de um problema do qual desconhece as origens.
Como ações mitigadoras e ao mesmo tempo promotoras da participação do cidadão na recuperação de sua cidade há muito que fazer. Recuperar espaços públicos dedicando-os à convivência urbana; investir em modos não poluentes e não motorizados, criando redes de transporte permeáveis; focar prioritariamente nas populações mais vulneráveis (uma cidade boa para portadores de deficiências e crianças será sempre uma cidade mais humana), estes são apenas alguns exemplos de ações que exigem dos gestores não apenas atitude, como diálogo permanente com a sociedade. Um prefeito ousado pode começar olhando para as escolas e seus bairros. E irá perceber uma realidade reveladora: quantas de suas crianças já foram a pé para a escola? Quantas possuem bicicleta? As respostas a essas perguntas simples irão revelar uma cidade doente, que só irá se recuperar se a maioria das pessoas for envolvida nas soluções, num movimento democrático de baixo para cima, e não autocrático e paternalista de cima para baixo.
As mudanças políticas, invertendo as prioridades e focando nos municípios, estas virão como decorrência natural, fruto da vontade coletiva por uma cidade melhor e para todos. No entanto, é preciso começar o quanto antes.
Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes e editor da ANTP – Associação Nacional de Transportes Públicos

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