quarta-feira, 31 de maio de 2017

Meu fascista interior - Marcelo Coelho


31/05/2017 08:18 - Folha de SP
ANTP
Era um lindo domingo de maio, eu dirigia o carro tranquilamente, sem trânsito nem nada urgente a fazer.
Passou um homem de bicicleta. Usava capacete, tinha uns 20 anos menos do que eu, barba ruiva e óculos de sol bem moderninhos.
Algo dentro de mim se revoltou. Não foi propriamente um pensamento. Mas veio a vontade de dizer entre dentes: "Ciclista filho da p...".
Repito, não penso assim. Acho uma excelente notícia que, aos poucos, a bicicleta substitua o carro; a cidade se civiliza. Na pior das hipóteses, os ciclistas não fazem mal a ninguém.
Por que, então, aquela vontade de xingar?
Quem surgia, certamente, era o meu fascista interior. Tento escutá-lo. O que me incomodava no ciclista, basicamente, só podia ser uma coisa.
O ciclista era melhor do que eu. Mais esperto, mais jovem, mais descolado. Sem me ver, sabia disso. Jogava na minha cara o meu atraso. Sua própria existência era a demonstração do meu erro, do erro em que consistia a minha vida.
Não digo que ele me tenha provocado algum sentimento de culpa. Se isso aconteceu, foi rápido demais. O ciclista não atingiu minha consciência moral. Atingia algo mais fundo; ameaçava minha pessoa, punha em questão tudo o que sou.
Obviamente, nada disso resiste a um exame racional. Não resiste nem sequer a um confronto com minhas próprias opiniões conscientes.
Estamos no nível das entranhas, das vísceras, da pura irracionalidade. É aí que se desenvolve o ânimo fascista.
Se for para discutir racionalmente, o fascista –uso o termo aqui como sinônimo de autoritário e intolerante– não vai resistir à argumentação.
O brucutu contemporâneo diz, por exemplo, não ter nada contra os homossexuais, os crossdressers, os transgênero.
"Nada contra, mas...". Mas não quer, por exemplo, que eles andem pela rua, que "façam propaganda" de seu modo de ser, que façam a "apologia" de seu próprio estilo.
Fundamentam esse veto com uma desculpa. Toda aquela "publicidade" terá o efeito de desorientar crianças e adolescentes, levando-os a um caminho que não iriam seguir sozinhos.
É mentira, claro. Ninguém se tornará transexual se não quiser. O que perturba o intolerante não é isso. Talvez ele se ressinta da superioridade do homossexual, da drag queen.
Afinal, como no caso do ciclista, essas pessoas pensaram no que deveriam ser. Encontraram-se depois de buscar o seu caminho. "Optaram", como se dizia antigamente.
Já o autoritário está na estaca zero: sempre foi como é, num mundo em que as coisas sempre foram como são. Por que surge tanta invencionice agora?
A situação é desconfortável. Ele se vê sem argumentos, está perplexo, o mundo lhe parece estar sendo tomado das mãos. A rua não mais lhe pertence. A cidade, o país tampouco.
Como sair dessa estaca zero? Como se defender dessa invasão?
No século passado, a resposta foi engenhosa. Já que "os outros" pareciam superiores ao pobre coitado –os judeus eram claramente superiores a ele–, a solução era oferecer-lhe, justamente, uma oportunidade de "optar", de "transformar-se".
O uniforme, a suástica, o braço estendido, a mitologia romana propiciavam ao cretino uma "nova identidade", quase tão boa quanto uma mudança de sexo.
Ele agora era o "superior", com a vantagem de ser quem sempre foi –pois sua identidade ganhava a confirmação óbvia, automática, da etnia e do lugar de nascimento.
Se era do sexo masculino, agora se assumia como "super-homem", guerreiro e macho. Se antes não sabia bem por que odiava, ganhava agora um sistema de pensamento que o ensinava a odiar.
Tornava-se militante do "novo", em proveito de manter a mesma coisa –as tradições, a pureza da pátria, a ordem, a hierarquia e, dentro disso tudo, a própria humilhação que sempre sofreu.
Primitivismo e animalidade, antes o "default", a base neutra de seu modo de pensar, ganhavam as cores do futuro, o brilho do metal polido, a luz das tochas na noite ancestral.
O fascista contemporâneo não conta com esses recursos.
Verdade que, no shopping, há insígnias para todos os gostos. Lacoste, Hugo Boss, Ferrari: é uma esplêndida oferta de opções. Nisso ele é liberal.
Sai então para ver a rua. Quanta pichação! Quanto ciclista! Quanto mendigo! Quantos dependentes de crack! Quer limpar tudo, evidentemente, com jatos d'água, tinta branca e gás lacrimogêneo. Assim, ninguém o ameaça. 
Marcelo Coelho - membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios.

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