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Enquanto o debate público é dominado pela agenda da “indústria da multa”, no trânsito, milhares vidas estão sendo perdidas sob duas rodas
O engenheiro e sociólogo Eduardo Vasconcellos soou o alarme para uma situação que as autoridades deveriam ter percebido há anos: precisamos falar sobre acidentes de moto.
Sua declaração feita à Folha (18/06/2016) não poderia ter sido mais forte: “É difícil encontrar no Brasil, fora a escravidão, um fenômeno social tão destrutivo quanto a motocicleta”. E não, não é exagero. E, nesse ponto, podemos distribuir a responsabilidade entre todos os governos recentes, FHC, Lula e Dilma (quem sabe assim podemos sair do Fla-Flu e fazer alguma coisa), além de fabricantes e legisladores.
(Foto: Juliano Cidro/ Sudoeste)
A bomba-relógio, como conta Vasconcellos, foi armada em 1997, quando da aprovação do novo Código Brasileiro de Trânsito, que trouxe muitos avanços, e foi fruto de seis anos de muitos debates. Mas, segundo relata o autor de “Risco no trânsito, omissão e calamidade“, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, após pressão da indústria, vetou o artigo que proibia motos de trafegar entre as faixas de rolamento. Em seguida vieram os incentivos fiscais.
Esses incentivos à indústria motociclística continuaram na década seguinte, já sob Lula. Em especial, com a crise financeira global de 2008, o governo desonerou fortemente a produção de vários itens duráveis, entre os quais motos, no final daquele ano. Foi só em 2012 que a alíquota de IPI sobre as motos, que tinha caído para 15%, voltou para 35% (e mesmo assim, não afetou a Zona Franca de Manaus, que concentra 90% da produção nacional).
Como resultado, depois da queda da produção de 28,1% em 2009, a produção cresceu em 2010 e 2011, chegando ao patamar recorde pré-crise. Mas, depois, houve queda nos três anos seguintes. Apesar do sobe-e-desce dos anos Lula-Dilma, as ruas das cidades foram inundadas com as 20.164.800 motocicletas produzidas no período, segundo dados da Abraciclo, a associação do setor.
As consequências dessa bomba-relógio não tardaram em explodir. Segundo dados compilados por Vasconcellos, foram nada menos que 2.058.504 acidentes com vítimas entre 2008 e 2015. No mesmo período, pediram indenização por invalidez decorrente de acidente com motocicletas 1.896.374 de pessoas, ou quase 1% da população (esses dois dados dão a letra da severidade dos acidentes). E outras 162.130 pessoas morreram (não é descabido assumir que a maioria dessas vítimas eram jovens).
Um estudo do IPEA de 2015 apontou que, embora as motos fossem envolvidas em apenas 18,6% dos acidentes nas rodovias federais em 2014, os motociclistas representavam 27,9% do total de mortos em acidentes e 40,6% do total de feridos graves. Diz o estudo: “Os indicadores (…) referentes ao número de mortes a cada cem acidentes e o número de acidentes para cada acidente com morte ou ferido grave por modalidade de transporte também mostram a maior letalidade da motocicleta em relação aos demais modais. Enquanto nos automóveis a cada 8,3 acidentes ocorrem morte ou lesão grave, nas motocicletas esse valor é de 2,9”.
Segundo o IPEA, 44% das vítimas fatais em acidentes com motos eram da região Nordeste.
No total, os acidentes em rodovias custaram em torno de R$ 40 bilhões em 2014, segundo estimativa do instituto. Só em rodovias federais esse valor foi de R$ 12,3 bilhões. A maior parte (quase R$ 8 bilhões) são “custos associados a pessoas”, como despesas hospitalares, atendimento, tratamento de lesões, remoção de vítimas e perda de produção. Pois bem, desse total de custos associados a pessoas, 25,8% são relativos à modalidade motocicleta. Tanto a proporção de motocicletas no total o custo, quanto no total de mortes e no total de acidentes em rodovias federais aumentou entre 2007 e 2014, segundo o estudo. Dados do Ministério da Saúde mostram, além disso, que as internações de acidentes no trânsito no país aumentaram 58,8%, mas de motos o aumento foi de 113%, entre 2008 e 2013.
No total, os acidentes em rodovias custaram em torno de R$ 40 bilhões em 2014, segundo estimativa do instituto. Só em rodovias federais esse valor foi de R$ 12,3 bilhões. A maior parte (quase R$ 8 bilhões) são “custos associados a pessoas”, como despesas hospitalares, atendimento, tratamento de lesões, remoção de vítimas e perda de produção. Pois bem, desse total de custos associados a pessoas, 25,8% são relativos à modalidade motocicleta. Tanto a proporção de motocicletas no total o custo, quanto no total de mortes e no total de acidentes em rodovias federais aumentou entre 2007 e 2014, segundo o estudo. Dados do Ministério da Saúde mostram, além disso, que as internações de acidentes no trânsito no país aumentaram 58,8%, mas de motos o aumento foi de 113%, entre 2008 e 2013.
O quadro é alarmante. Mas pouco debatido.
Diante disso, o que deveria ser feito? Bom, a primeira medida, além de reconhecer o problema, é PARAR de incentivar o uso de motocicletas. De fato, o debate feito pelas autoridades políticas continua indo no sentido CONTRÁRIO e ignora largamente essa realidade, como mostram, por exemplo, as propostas deisentar o IPI de motocicletas para deficientes, para agentes de saúde (proposta foi rejeitada em 2014, mas reapresentada em 2016) e para mototaxis.
Certo, sabemos o que não fazer. Mas, o que fazer? Reduzir o limite de velocidade?
Certo, sabemos o que não fazer. Mas, o que fazer? Reduzir o limite de velocidade?
A redução de limite de velocidade vem trazendo resultados expressivos em várias cidades do país, como em São Paulo, como contamos aqui. Na capital paulista, apesar do aumento contínuo da frota circulante de veículos, o número de mortes vem caindo, em especial nos últimos dois anos: chegou à menor quantidade de fatalidades (992) da série histórica iniciada em 1979, o que representou um número 34,1% mais baixo que em 2005.
Muitos fatores explicam essa redução, entre os quais o aumento da fiscalização e a expansão do programa de redução do limite de velocidade. Mas, quando observamos o comportamento das mortes de motocicletas, o quadro é menos animador. De fato, ao analisar a evolução anual do número de mortes em acidentes de trânsito em São Paulo segundo a classificação de usuário (pedestres, motoristas/passageiros, motociclistas e ciclistas), vemos uma grande discrepância nas tendências, nos últimos 11 anos.
Entre 2005 e 2015, o número de mortes caiu 34,1%. Mas espere, há números positivos ainda mais impressionantes: a queda do número de mortes de ciclistas foi de 66,7%; de motoristas e passageiros foi de 46,1%, e de pedestres (ainda hoje as maiores vítimas no trânsito), 44%. Legal, mas qual a discrepância? Nesse mesmo período, o número de mortes de motociclistas AUMENTOU 7,2%. Como resultado, a porcentagem de motociclistas entre as vítimas fatais no trânsito, que antes representava 22,9% do total em 2005, passou de para 37,3%. Se nada for feito, dentro de poucos anos, os motociclistas serão as maiores vítimas fatais em acidentes de trânsito, tomando a liderança indesejada dos pedestres.
Claro que em 11 anos, a frota de motos aumentou ainda mais que 7,2% (de fato, cresceu 120% no período). Assim, a taxa de mortes por 10 mil motos caiu (de 7,03 para 3,41), mas segue sendo, em termos absolutos, uma situação preocupante. Outro atenuante foi o fato de que houve redução no número de mortes de motociclistas entre 2014 e 2015, que passou de 440 para 370, queda de 15,9%, semelhante ao que aconteceu com o número de mortes de motoristas/passageiros no período (-16,9%).
Ou seja, os números sugerem que a redução de velocidade pode ter tido contribuição na redução no número de fatalidades, mas, pela dificuldade em fiscalizar e pela dimensão do problema, o impacto positivo tendeu a ser mais limitado que para os demais grupos. Tudo leva a crer que, dada a severidade do problema, outras medidas específicas são necessárias. Então, o que fazer?
A primeira coisa é superar de vez a discussão da redução de velocidade/”indústria da multa”, pois esse não é o debate que irá salvar mais vidas e fazer com que a cidade de São Paulo atinja sua meta de redução da taxa de mortes no trânsito para 6 por 100 mil habitantes até 2020 (atualmente é de 8,8).
A segunda coisa é aceitar que esse é um problema de saúde pública e colocá-lo como tal na agenda política da cidade. É só com um amplo debate, juntando o que há de melhor na produção academia, na sociedade civil e nos movimentos sociais é que se vai avançar, de maneira pactuada, para reverter o quadro. Esse blog, escrito por um não especialista, não tem a pretensão de dar as respostas.
Mas, na condição de um mero interessado no tema e palpiteiro, diria que uma terceira medida a ser feita seria reiniciar o debate sobre o veto à proibição de motos trafegarem entre as faixas de rolamento (algo defendido tanto pelo estudo do IPEA quanto por Vasconsellos). Isso seria uma pauta para os nobres parlamentares debaterem. Mas, como vimos, os interesses e a direção do debate no Congresso Nacional seguem na direção oposta à da segurança no trânsito. Só que, se a sociedade não colocar esse tema na agenda, ficaremos na mesma. A única saída é criar um consenso e uma pressão social para convencer os legisladores.
Uma quarta medida poderia ser a de aumentar os requisitos para obter e manter habilitação. Por exemplo, aumentar a exigência do número de horas de aulas práticas e melhorar a qualidade dos cursos teóricos. Atualmente, 20 horas de aulas práticas já são considerados suficientes para um motociclista dirigir por aí, no Brasil. O Estado de Nova York, nos EUA, por exemplo, recomenda que essa carga horária seja pelo menos 50% maior: 30 horas, pelo menos. Aumento do período “probatório” poderia também ser uma medida a ser debatida, assim como exigir cursos regulares de direção defensiva e segurança no tráfego, digamos a cada três anos. Outros “desincentivos” poderiam passar por aumentar a alíquota ICMS sobre motos, atualmente 12% para até 250 cc (menos que os 18% de bicicletas) ou 25% para motos com mais de 250 cc.
Por fim, claro, motos são atrativas porque são mais rápidas que transporte público e são relativamente baratas. O “desincentivo” ao uso de motocicleta passa, portanto, pela melhoria do transporte público. Ter ônibus mais confortáveis, confiáveis e mais rápidos são fundamentais para reter os usuários do transporte coletivo e demovê-los da ideia de comprar uma moto em suaves prestações. Incentivo a modais mais sustentáveis e seguros que a moto, como a bicicleta, também é desejável.
Medidas são adotadas localmente nas cidades, como em São Paulo, que implantou um programa de redução de velocidade, introduziu fiscalização porradar móvel tipo pistola (o radar fixo é incapaz de fiscalizar motos) e estudaproibir motos de trafegar na pista expressa da marginal Pinheiros (em 2010, a Prefeitura vetou as motos na pista expressa da marginal Tietê, mas, pressionada, teve de recuar da proibição na Pinheiros em 2011). Elas ajudam, mas tem alcance limitado. A luta é árdua, e conta com a oposição dos próprios motociclistas.
Mas a principal dificuldade está no rebaixamento do debate público. Jornais e, agora, candidatos como João Dória, Celso Russomanno e Marta Suplicy prometem voltar aos limites de velocidade anteriores, mesmo sem mostrar com evidências que a redução não contribui de fato para a redução de mortes e sem apontar, também respaldado em fatos, quais as medidas vão tomar para dar mais segurança no trânsito e se terão resultados iguais ou mais eficientes que a redução de velocidade (e se são de fato excludentes). Mas, infelizmente, a questão da segurança no trânsito virou uma questão secundária, e perdeu espaço para o discurso da “indústria da multa”, que ignora a questão e pede menos fiscalização ao comportamento de risco no trânsito. Representa o retrocesso em vários sentidos. Precisamos avançar e não retroceder no debate sobre segurança no trânsito.
Precisamos falar sobre acidentes de moto.
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