Ana Carol Nunes
https://medium.com/@anaca_nunes/cidade-substantivo-feminino-9db471adbfe7#.5jmxx9s2u
Nós mulheres não pudemos decidir sobre o desenvolvimento das cidades — e deu na m* que deu
As megacidades reúnem hoje tudo o que há de bom e ruim no século XXI. Por um lado, colecionam os grandes símbolos da nossa falência enquanto humanidade: violência, poluição, desigualdades abissais, guerras civis no trânsito, destruição de mananciais. Por outro, são cenário de iniciativas inovadoras que renovam as esperanças de um dia tirar o planeta da crise socioambiental que vivemos: hortas urbanas, coletivos de recuperação e ocupação do espaço público, redes que reúnem desde comunicadores livres até coletivos de trocas.
É no espaço das cidades que se evidencia a crise civilizatória: quando acaba a água, quando casas são destruídas por enchentes, pessoas não podem sair de casa por causa da poluição ou de balas perdidas. Mas para metade da população o ambiente urbano consegue ser ainda mais hostil, porque se combina às opressões de gênero. Quer saber como é a qualidade de vida de uma cidade? Pergunte às mulheres que vivem lá.
Somos maioria andando a pé e andando de transporte público. Somos nós que temos que nos virar para cumprir todas as atribuições que nos são delegadas sem ter infraestrutura para nos locomover com dignidade e conforto. Somos nós que mais sofremos para conseguir moradia digna e acesso a serviços sociais públicos. Somos nós que vestimos armaduras para encarar o espaço público, extremamente violento conosco.
Ora, quem melhor do que nós para promover as mudanças radicais nas cidades?
Historicamente, fomos apartadas das principais decisões sobre a constituição da cidade. Basta olhar os gabinetes de infraestrutura e transportes dos governos para perceber esse desequilíbrio. Mesmo assim, foi sobre a exploração do nosso trabalho — em grande parte não-remunerado — que as cidades foram produzidas.
A visão patriarcal de construção da cidade concentra-se em abrir espaços para facilitar o fluxo de capitais. Todo o resto é adjacente, incluindo as atividades historicamente ligadas ao gênero feminino, como o cuidado e a reprodução. As cidades ocidentais tornaram-se ambientes estéreis, centrados na produção dos bens que o dinheiro pode comprar, e com fronteiras bem definidas entre o que tem e não tem valor. Onde as relações interpessoais perdem significado — para quê desenvolver ligações e se envolver com sua comunidade se isso não vai produzir nada vendável? Às mulheres, mantêm-se reservados os espaços privados, único lugar onde o patriarcado enxerga nosso valor. É nesse contexto que o direito de sair das bolhas privadas e circular com segurança e conforto nos espaços públicos torna-se um luxo para nós.
Obviamente que essa combinação não poderia dar certo. E como é nas cidades que se expressam as relações políticas inevitáveis, pessoas a cada dia mais se rebelam contra esse modelo de cidade que segrega, aprisiona e mata aos poucos (ou bem rápido e fugazmente, que o diga a juventude negra periférica). Acontece que os questionamentos sobre esse modelo de organização em espaços urbanos, mesmo que sem querer, passam necessariamente pela desconstrução da cidade patriarcal.
Pode reparar: muitas das micro-revoluções que acontecem em cidades por todo o mundo contam com a participação ativa de mulheres. (Eu mesma participo de organizações pela mobilidade ativa e elas estão cheias de mulheres no front.) Até porque não dá para chamar de mudança efetiva qualquer iniciativa de tornar as cidades mais agradáveis e justas que repita o erro histórico de nos excluir. Ninguém melhor do que nós para saber de que reviravoltas as cidades precisam para serem ideais, de facto, para todas as pessoas.
Não sei se esse nó que estamos tentando tirar da garganta clamando por mais respeito e segurança no espaço público tem de fato alguma coisa a ver com a percepção de que os espaços urbanos precisam ser feminizados. Mas é óbvio ululante que a revolução socioambiental pela qual o mundo precisa passar, e que pode se iniciar dentro das micro-revoluções urbanas, tem gênero (e cor).
Antes de terminar, vamos desfazer possíveis equívocos: não, a participação de mulheres nos movimentos urbanos não tem NADA de novo. Mesmo que o espaço público sempre nos tenha sido negado, ao longo dos séculos nos organizamos em redes subterrâneas e comemos pelas beiradas para conseguir participar das lutas por cidades mais justas. As associações comunitárias e os movimentos por moradia e saneamento básico que o digam! Mas chegamos ao ponto em que não dá mais para se limitar às margens: estamos e precisamos dominar TODOS os espaços de decisão sobre os rumos das nossas cidades. Ou as cidades são das mulheres ou não serão de ninguém.