Tratar dos conflitos do médio oriente sempre é uma missão desgastante, não devido a sempre apontada complexidade, mais aparente que verdadeira, mas devido a massacrante obviedade dos atos e eventos perpetrados pelos atores interessados, que não são poucos e sim muitos. Neste contexto, pode-se abordar a tão propalada “Primavera Árabe”, que na época do seu desenrolar já evidenciava, ao menos para os dotados de perspicácia, não ser nada mais que uma farsa, no entanto, muito bem elaborada e adornada da fantasia da democracia, tão cara aos veículos da mídia ocidental e aos nossos ternos corações.
As farsas e engodos, como bem se sabe, são recursos para ocultar a real intenção de uma ação objetiva, e no tocante ao oriente próximo, também chamado de médio, tem-se a geopolítica do petróleo como pedra angular para a real compreensão da cadeia de eventos que por lá se desenrola. Em função do domínio pleno da exploração e transporte, movem-se as potências, e a mais influente, os EUA com especial avidez, não só devido ao seu consumo exorbitante da referida commodity, mas pelo fato de seu poder emanar da conjunção da sua moeda a comercialização do petróleo. Quando os maiores produtores, no caso aquela com reservas maiores, Arábia Saudita, aceita apenas dólares americanos como pagamento, a posição da moeda nacional dos EUA vê-se reforçada e não ameaçada como moeda de referência, meio internacional de troca. Desta forma, os déficits norte-americanos não se tornam um problema, sendo isto apenas uma retórica econômica a ser dirigida às economias débeis.
Dá-se que o drama do Oriente Médio ocorre em torno da commodity de uso global. A Arábia Saudita utiliza-se da ideologia wahab como pedra de toque da expansão da sua influência na região, em especial nas áreas de confissão sunita, como ferramenta para a sua ascensão ao sonhado posto de potência regional. Em nome deste sonho, neste presente momento, ataca o pobre vizinho, Yemên, com aquilo que de melhor pode o dinheiro comprar em termos de materiais bélicos do ocidente. Se o paupérrimo Yemên resiste, isto se dá devido ao fato de ainda não ser a coragem, bravura e determinação artigos vendáveis. Todavia, no Iraque, bem como na Síria, devido a uma cadeia de eventos o uso de forças irregulares, denominadas de takfiris, pode ser lançada à mão. A insurgência sunita, caracterizada como espontânea, disso nada possui, pois antes é uma obra de inteligência, no caso de um conluio entre um eminente príncipe saudita, Bandar Bin Sultan, e a afamada agência de desestabilização de regimes dos EUA, CIA. Não se engane, caro leitor, lutar custa caro, muito caro. E custará ainda mais caro se você pretende manter e gerir territórios. Não existe possibilidade alguma que o atual nível de combatividade das siglas que hoje combatem no levante, Al – Nusra, Estado Islâmico, Ansar Al Islam, serem entidades independentes e providas de recursos românticos. Impossível. Existe por trás uma fonte de financiamento estável, estruturada e poderosa, da qual a Arábia Saudita é partícipe, os EUA, cúmplices. Idem para as nações europeias que fazem parte da OTAN.
A intervenção russa que agora observamos, exibe o notório profissionalismo da chancelaria eslava, clara, objetiva e com irrepreensível senso de oportunidade. As ações em curso, bem como a infraestrutura empreendida denotam que não houve pouco planejamento, que o improviso, por certo, não se fez presente. Esperava-se o momento adequado, este providenciado pelas dantescas imagens dos refugiados aportando nas praias europeias, bem como dos corpos inertes dos afogados, cujo fracasso na travessia, representado pelo corpo singelo de uma criança em uma praia turca, gravou-se de forma indelével no inconsciente coletivo, estampada que foi como registro iconográfico desta tragédia humana. Esta imagem, que correu o mundo, de certa forma, é a condenação das ações norte – americanas e da OTAN, posto que no que tange à Síria houve apenas o agravo da situação, jamais uma melhora. A ação russa, incisiva no plano bélico, desmonta o conjunto retórico dos EUA pelo fato simples de não haver resultado concreto das ações deste país. Mas, como poderia haver, se os grupos armados na Síria são todos eles ativos estratégicos dos EUA e da Arábia Saudita? A resposta é simples: não poderia.
A Rússia efetua com a sua intervenção o ataque a objetivos múltiplos em termos políticos: dá combate a jihadistas do Cáucaso fora das suas fronteiras; afasta a possibilidade de uma vitória dos grupos rebeldes ao restabelecer o equilíbrio de forças na região; evita o estabelecimento de uma No Fly Zone na Síria por parte da OTAN; aproxima-se ainda mais do Iraque em termos políticos; retira da Turquia a perspectiva de grandes ganhos políticos e econômicos com o esfacelamento da Síria e com isso aumenta a importância estrutural do acordo turco-russo em relação aos oleodutos/gasodutos TANAP; reforça a posição do Irã como nação indispensável ao diálogo político no Oriente Médio; impõe a Israel, forçosamente, uma posição defensiva; expõe a retórica da União Europeia e dos EUA como contraditória e desprovida de sentido face à realidade; desnuda perante ao mundo a ajuda dos EUA e da Arábia Saudita aos grupos terroristas e alça Bashar al Assad a sua condição original: dignitário de uma nação reconhecida, a Síria.
Por não ter pudor quanto aos grupos armados que espalham terror na Síria, a Rússia consegue colher em dias aquilo que a OTAN foi incapaz de o fazer em meses. A VKS, Força Aeroespacial da Federação Russa, destruiu, por exemplo, o Quartel General do Estado Islâmico localizado na cidade Palmira, ataque este que resultou na morte de 40 extremistas, bem como destruiu uma extensa coluna de caminhões tanque com derivados de petróleo, fonte de renda do Estado Islâmico. Aliás, este evento, o ataque a coluna de caminhões tanque, demonstra de maneira inarredável a hipócrita relação dos EUA e das antigas potências coloniais europeias perante o conflito, pois os compradores destes derivados e do óleo cru do Estado Islâmico são as grandes empresas de energia destes países, que financiam o Estado Islâmico ao comprar por preço ínfimo o petróleo e seus derivados. Compreende-se, pois, o fato de em meses de campanha aérea dos EUA contra o EI nunca ter-se visto um ataque a tais comboios…
Todavia, ficam as perguntas: Putin subestimou o conflito na Síria? Não tem em mente que a intervenção na Síria pode-se tornar um atoleiro? Respondê-las não é fácil e pode parecer um exercício de adivinhação, principalmente pelo fato conhecido de que lutar jogando bombas em cabeças de terroristas ser algo muito caro, dispendioso. Não são raras as imagens do novo SU-34 equipado com bombas KAB-500, arma guiada por sinais GLONASS e GPS. Ademais, para haver vitória contra insurgentes é indispensável a presença de infantes. Ora, é justamente a carência de infantes das armas sírias frente a uma torrente contínua de mercenários da jihad, provindos dos quatro cantos do mundo islâmico, o problema maior da liderança síria. Percebe-se, portanto, que alguma ajuda neste campo, infantaria, se faz necessário. O Exército Árabe da Síria recebe, como sabido, apoio do Hezzbolah, mas este grupo libanês, de confissão muçulmana xiita, possui um efetivo limitado em termos numéricos, apesar de ser extremamente experiente e combativo. Por isso Irã é apontado imperiosamente como o fornecedor de instrutores e combatentes, dado a percepção de que as tropas russas presentes lá estão em função da proteção da base de Latakia. As notícias sobre efetivos chineses não devem ser consideradas como dignas de crédito, estando Pequim na posição de fiador das ações bélicas russas, mas não de participante ativo.
Entretanto, tudo mudará se houver o emprego de efetivos terrestres russos na Síria. O trânsito de navios de transporte da classe Ropucha entre o Mar Negro e o Mediterrâneo foi constatado. Para se ter uma ideia, cada navio desta classe pode transportar 10 Carros de Combate e 340 fuzileiros. A presença de carros de combate T-90S já foi registrada, bem como de unidades de Forças Especiais sem distintivos (Spetnaz), além disto, o envio de fuzileiros navais foi anunciado pelo Governo da Federação Russa. Neste contexto, haverá com certeza o recrudescimento do apoio logístico da Arábia Saudita e do Qatar aos grupos insurgentes que movem a sua guerra por procuração, pois não se desiste de uma aventura de monta de maneira tão fácil. Pode-se dizer, que o envio de MANPADS e de mísseis anti-carro por partes das monarquias do golfo é certo, com o objetivo, óbvio, de se formar um atoleiro, elevando os custos russos a um nível inaceitável.
Por fim veremos o mesmo de sempre: notícias desencontradas, farsescas, inventadas, forjadas no frisson que uma guerra causa em qualquer redação. Além das distorções premeditadas, pautadas pelos rancores ideológicos e pela guerra de propaganda. Como foi dito e percebido, as “vítimas civis” dos ataques russos apareceram antes mesmo da decolagem do primeiro jato de ataque da VKS. Não será uma novidade. Nunca é. Apenas o martelar de sempre das palavras selecionadas para o devido resultado neurolínguistico, para fazer você acreditar em uma ilusão. Ilusão esta que terás como realidade, pela qual lutarás com unhas e dentes. Não é algo novo, principalmente em terras brasileiras, mas, é cansativo, desgastante, para não dizer, entediante.
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