quinta-feira, 23 de março de 2017

OPINIÃO: Falta inovar na concepção

ALEXANDRE PELEGI

Diário dos Transportes
“Nem sempre a inovação é tecnológica. O que falta é a inovação na concepção das cidades.” (Jaime Lerner, urbanista)
 “Para quem ignora ou despreza o apartheid escancarado em nossas cidades, recomenda-se que circulem pelos subúrbios e periferias para constarem, in loco, o abismo que separa essas áreas do restante da cidade” (Luiz Fernando Janot, arquiteto)
Não é de hoje que a palavra inovação passou a fazer parte do vocabulário do setor de transportes públicos. Essa história, na verdade, vem sendo construída com sofreguidão, seja pelas operadoras de transporte coletivo, seja pelas startups, que buscam minimizar a ineficiência da informação ao usuário urbano. Agora a palavra inovação adentra com vigor o mundo da gestão pública, carregando consigo outra palavra: tecnologia.
Vale lembrar que os desenvolvimentos recentes na tecnologia de informação têm proporcionado grandes avanços no gerenciamento dos sistemas de transportes. Tanto órgãos gestores como operadores têm investido na implementação de sistemas automatizados, buscando auxiliar não apenas na melhoria da qualidade dos sistemas de transportes, como também na forma de aumentar a produtividade do setor.
Para o usuário, no entanto, o que importa é que sua vida seja descomplicada, tornando sua locomoção pela cidade o menos estressante e desconfortável possível. As cidades, do jeito como estão espalhadas, são fatores cruciais para o desconforto de quem precisa usar transporte coletivo. O esgarçamento do tecido urbano, que empurrou as pessoas mais pobres para moradias mais e mais distantes dos empregos, é um dos principais fatores de pressão sobre as ofertas de transporte. Como conta o arquiteto Luiz Fernando Janot, “a dificuldade para adquirir um imóvel nas áreas urbanizadas, por absoluta falta de recursos e indisponibilidade de obter financiamentos compatíveis com a sua renda, não deixou outra opção a essas camadas da população (os mais pobres) senão a de ocupar informalmente as franjas da cidade, isto é, os morros, as margens de rios e outras áreas devolutas espalhadas pela periferia”.
O dilema de todo prefeito (com pressão maior para os das cidades médias e grandes) está em como oferecer locomoção de qualidade, eficiente e confortável, a um custo razoável, compatível com a renda do cidadão. Um dilema que, apesar de antigo, tem se agravado a cada ano.
Enquanto os principais problemas não são resolvidos, milhões de pessoas saem de suas casas diariamente sem a menor ideia do que as espera: qual será o tempo de espera por um ônibus? Quanto tempo levará sua viagem? Qual será a lotação do veículo? Como está a operação dos sistemas de trilhos? Sempre é bom lembrar que a solução para muitos desses problemas demandará anos, sem esquecer que para qualquer melhoria de curto ou médio prazo são necessários ingredientes já conhecidos: forte vontade política seguida da até hoje desconhecida continuidade administrativa.
As perguntas desfiadas acima são apenas algumas de uma longa série que todo usuário de transporte público se faz diariamente. Enquanto os operadores públicos lutam para manter a oferta dentro de um mínimo suportável e esperado – a mão de obra tem que chegar ao local de trabalho, é uma exigência econômica –, os empresários e gestores buscam formas de aumentar receitas e diminuir custos. Sem fontes fixas de financiamento para o sistema, prover transporte público é um desafio que caminha no fio da navalha, relegando a um futuro incerto e não sabido as respostas às perguntas que os usuários se fazem todos os dias.  Mas só isto não basta: os desafios permanentes da mobilidade decorrem da forma como concebemos nossas cidades. Sem atentar para isso, fontes de financiamento e continuidade administrativa servirão para perpetuar e gerar novos problemas para as cidades, ao invés de resolvê-los.
Enquanto as soluções não surgem, queda claro que toda e qualquer medida para minimizar as agruras dos que se utilizam dos transportes públicos nas médias e grandes cidades virá sempre como um paliativo que, como toda ação emergencial, terá curto tempo de vida. Logo, sem continuidade administrativa de um lado, e sem fontes fixas de financiamento de outro, qualquer ação pública resvalará na superfície do problema, seja com medidas ditas inovadoras (por usarem traquitanas tecnológicas modernosas), seja com ações de redivisão do espaço público. Problema que, todos sabemos, já perdura há décadas e só tem feito piorar, agravado pelo crescimento das frotas de veículos automotivos usados no transporte individual, pelo crescimento exponencial das taxas de urbanização e pela concepção rodoviarista que marca nossas cidades.
Falta, portanto, à palavra inovação um entendimento que transcenda o significado tecnológico que muitos lhe conferem hoje em dia; falta-lhe o conteúdo político. Afinal é na política, e só nela, que se poderão desatar os nós que impedem a melhoria do transporte público nas cidades brasileiras.
Temos que inovar, antes de tudo, na maneira como vemos e resolvemos nossos graves problemas urbanos. Como lembra Jaime Lerner, “o que falta é a inovação na concepção das cidades”.
Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes e editor da ANTP – Associação Nacional de Transportes Públicos.

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