Jornal GGN – As cidades brasileiras vivem um momento de necessárias transformações. O modelo europeu de Estado de bem estar social tenta se impor sobre a lógica patrimonialista, que mantém a propriedade privada como valor central da sociedade.
A criação do Estatuto das Cidades e do Ministério das Cidades foram os primeiros passos. E, enquanto ainda surgem Planos Diretores alinhados com os interesses do capital, prefeitos progressistas também conseguem criar agendas desenvolvimentistas.
O Plano Nacional de Mobilidade Urbana lastreou em lei federal a priorização ao transporte público em detrimento do motorizado individual.
As questões de uso e ocupação do solo também entraram na ordem do dia. E a demarcação de terras de interesse social, política adotada em algumas regiões, busca criar caminhos para reduzir o déficit habitacional.
Mesmo assim, para que essas mudanças sejam possíveis, elas precisam ser perenes. Se a sociedade não se responsabilizar por essas transformações para além das disputas políticas e partidárias, elas podem ser interrompidas da noite para o dia.
Quatro anos não são o bastante para reestruturar cidades inteiras. O tempo social precisa prevalecer sobre o tempo político.
Essa é a opinião de João Sette Whitaker, professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, presente no 66º Fórum de Debates Brasilianas.org
A apropriação do público pelo privado
“As cidades no capitalismo são sempre o antagonismo entre os interesses do mercado, que utiliza a cidade pelo seu valor de troca, e a sociedade civil, organizada ou não, que vê a cidade pelo seu valor de uso. E uma das grandes perversidades e contradições da cidade capitalista é que a produção de localizações que é feita pela sociedade gera valorização e, portanto, ela é apropriada apenas por aqueles que têm a possibilidade e a capacidade financeira de fazer. A lógica da cidade capitalista tem essa perversidade: ela produz uma cidade que é coletiva, mas que é apropriada individualmente”.
A cidade não é uma soma de privilégios
“A questão é que naturalmente nós tendemos sempre a ver a cidade como uma soma de privilégios. Enquanto que nós, urbanistas, temos o problema de tentar mostrar que as cidades agradáveis são as cidades coletivas, democráticas e solidárias”.
A interpretação da cidade pela classe dominante
“Vamos tentar entender qual é a interpretação da cidade que a classe dominante faz. O que tem de pior nessa história é que se vende a ideia que nós temos uma urbanização ruim, péssima, horrível, cinzenta e que se mistura à criminalidade, que está ameaçando o quê? Uma urbanização maravilhosa, bonita, com prédios coloridos. E isso é uma tremenda enganação. Porque a urbanização dos ricos é horrorosa. Ela é segregadora, ela é dos privilégios, ela não se importa com nada, nem mesmo com o fato de criar verdadeiros muros da vergonha”.
A necessária lógica da solidariedade urbana
“A gente tem que se perguntar se a nossa sociedade está preparada para produzir cidades não pela lógica do privilégio, mas pela lógica da solidariedade urbana. Esse é o grande desafio. A gente precisa entender para além das disputas políticas, porque as disputas políticas, partidárias, imediatistas, contaminam a gestão da cidade. E a gente precisa saber relevar isso. Precisa chegar em um grau de maturidade da nossa participação cidadã em que a gente saiba identificar que a gestão da cidade tem que ser perene. Ela tem que sobreviver às gestões”.
Stand up tragedy do urbanismo nacional
“Você quando é urbanista pode fazer stand up tragedy. Eu fui uma vez no César Tralli, no SPTV. E aí eu conversei com a faxineira da Globo. E perguntei: ‘onde a senhora mora?’. Ela falou: ‘eu moro aqui no Real Parque’. Ela morava a 232 metros do trabalho... a nado! Aí eu perguntei: ‘quanto tempo a senhora leva pra chegar aqui?’. Ela falou: “em dia de chuva 1h15, se não tiver chuva 45 minutos”. Porque ela tinha que descer até a ponte do Morumbi e voltar pela Berrini para chegar lá na Globo. Porque para ela e para todos os pobres do Real Parque é proibido, com uma barreira, que é uma ponte que custou milhões e que é o cartão postal da cidade, a travessia daquela ponte para ir trabalhar. Porque incomodaria o bairro Global da cidade de São Paulo”.
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