sexta-feira, 5 de setembro de 2014

É hora de desestimular o uso do automóvel

Jornal GGN - Após anos de políticas públicas que incentivaram a compra e o uso do automóvel como principal meio de transporte, o Brasil atingiu a incrível quantidade de 130 milhões de veículos – incluindo carros, motos, ônibus e caminhões. Enquanto isso, a taxa de motorização do País continua crescendo à razão de 15 a 20% ao ano.
Especialistas consideram que um sistema de transportes está saturado quando alcança o número de 300 veículos para cada mil habitantes. Para se ter uma ideia, apenas a cidade de São Paulo tem 465. E, nesse caso, a metrópole nem é a pior do Brasil. Belo Horizonte tem 630, Curitiba tem 800.
No modal rodoviário, 96% dos deslocamentos do País são feitos por transporte individual. Os automóveis rodam mais de 450 bilhões de quilômetros por ano e as motocicletas quase 150 bilhões. Os ônibus, por sua vez, rodam apenas 25 bilhões de quilômetros. Além disso, a curva de deslocamento de carros continua a crescer, enquanto que a de ônibus segue praticamente estável desde o ano 2000. Ou seja, essa diferença está aumentando.
Há de se considerar também o impacto dessa realidade na emissão de gases do efeito estufa. Historicamente, as emissões nacionais sempre estiveram ligadas ao desmatamento – em 2004, 70% das emissões vinham do uso da terra. Em 2012, esse número caiu para 32%. Em compensação, as emissões provenientes do setor de energia, que em 2004 eram de apenas 11%, já correspondem a 30% do total.
Desse montante, a parcela mais significativa (42,2%) vem justamente dos transportes. E, novamente, o grande vilão é o transporte individual. Em 2012, automóveis eram responsáveis pelas emissões de mais de 60 milhões de toneladas de CO2 (Dióxido de Carbono), contra pouco mais de dez milhões dos ônibus urbanos e menos de cinco milhões dos ônibus rodoviários. Ou seja, os automóveis são responsáveis por 60% das emissões de CO2.
Além disso, há a questão do consumo de combustível. O petróleo representa 72,2% de todo o combustível fóssil do Brasil. Desse volume, 42,2% é utilizado nos transportes. O transporte individual consome mais de 35 milhões de toneladas equivalentes de petróleo (TEP) por ano, contra pouco mais de cinco milhões do transporte coletivo.
Todos esses números foram debatidos no Seminário Internacional sobre Desestímulo ao uso do Automóvel, realizado pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente, na última quarta-feira (3), em São Paulo. O evento reuniu autoridades de todo o mundo para discutir as melhores práticas para enfrentar esses problemas.
A questão ambiental e de mobilidade
De acordo com o diretor presidente do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), André Ferreira, há duas formas, “não excludentes”, de reduzir o impacto dos veículos no consumo de combustível fóssil e na emissão de poluentes: com políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento tecnológico e com ações de mobilidade urbana.
O Brasil, no entanto, só vem apostando na inovação tecnológica e na imposição de limites de emissões e de padrões de eficiência energética. Programas como o Inovar-Auto são bons para a indústria, mas só solucionam parte do problema.
“O avanço tecnológico do transporte individual não resolve, necessariamente, o cenário de mobilidade. Ele garante, sim, que se separe a crise ambiental da crise urbana. Mas o estímulo ao uso de carros elétricos e híbridos vai criar um novo cenário de ecocongestionamento”, explica André Ferreira.
Para ele, é preciso exigir que as políticas de transporte urbano contemplem o transporte público. “O Brasil tem um desafio institucional muito grande porque quem trabalha com meio ambiente não tem instrumentos para interferir na mobilidade urbana”, diz.
O executivo defende soluções como a ampliação das faixas de ônibus. “As faixas de ônibus são medidas de baixo custo. Está provado que ao tirar um ônibus do congestionamento há uma queda no consumo de combustível e na emissão de poluentes”, detalha.
Ele entende que a crise de mobilidade não é um fato recente, mas que agora chegou à atenção das pessoas porque não afeta apenas os mais pobres. “A gente ouve falar que as cidades brasileiras vivem hoje uma crise de mobilidade. Eu não vejo assim. As pessoas que dependem do transporte público vivem uma crise de mobilidade urbana há muito tempo. A ampliação da renda e do acesso ao consumo fez essa crise chegar até o usuário de automóvel”.
Os impactos na saúde
Atualmente, nenhuma estação de monitoramento da qualidade do ar de São Paulo mede dados compatíveis com a legislação brasileira para as emissões de ozônio. Já a poluição por material particulado (MP), está dentro dos parâmetros nacionais, mas muito acima das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Além disso, as redes de monitoramento verificam piora nos horários de pico, o que mostra inequivocamente a relação entre os veículos e a qualidade do ar.
De acordo com o professor do Departamento de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Nelson Gouveia, a OMS classifica a poluição do ar como um dos principais fatores de risco à saúde humana. “Em 2012, a Organização atribuiu 3,7 milhões de óbitos à poluição do ar”.
No Brasil, de 5 a 8% das internações e mortes são atribuídas à poluição. Em São Paulo, esse número é ainda maior, variando de 6 a 10%.
Além disso, é importante ressaltar que os efeitos da poluição do ar não estão ligados apenas a problemas respiratórios. “A poluição está relacionada a uma série de problemas respiratórios, cardiovasculares, na gravidez e até no sistema nervoso central”, afirma Nelson Gouveia.
Ele explica que não há limites seguros de exposição “A medicina moderna trabalha com uma ideia de exposição proporcional aos efeitos, ou seja, quanto maior a exposição, maior o risco”.
O professor ainda lembra que a poluição não é o único risco que os meios de transportes trazem para a saúde. “Eles também expõem os indivíduos a ruído, estresse, risco de acidentes e sedentarismo. Esses problemas não são combatidos pelas políticas públicas atuais”.
Nesse sentido, Nelson Gouveia se mostra totalmente favorável à Política Nacional de Mobilidade Urbana. “Pessoalmente, eu acredito que pode trazer benefícios para a saúde ao favorecer a atividade física e reduzir as emissões de poluentes. Estudos mostram que mudar do transporte individual para o transporte público e transporte ativo [bicicleta e caminhada] traz mais benefícios para a saúde do que qualquer investimento em tecnologia veicular”, garante.
O custo político da mobilidade urbana
Mesmo com todas essas informações disponíveis para a população, o custo político para se implementar medidas de mobilidade urbana pode ser altíssimo. A situação é ainda pior, porque geralmente essas informações não estão disponíveis.
Em São Paulo, por exemplo, o prefeito Fernando Haddad sofre com uma crise de imagem devido à sua opção de priorizar o transporte público e as bicicletas. As medidas, que poderiam ser consideradas uma resposta direta às demandas recentes por qualidade no transporte – que deram início às jornadas de junho passado – ainda não caíram no gosto de grande parte da população.
Especialistas internacionais afirmam que isso é normal, mas destacam a necessidade de o poder público investir em comunicação para deixar claros os benefícios das iniciativas. É o que explica Todd Litman, diretor executivo do Instituto de Políticas de Transporte de Victoria, no Canadá. “Até o momento, as políticas públicas de transportes estão sendo discutidas por engenheiros. É preciso trazer os especialistas em marketing para o debate. Gente que entenda os conceitos de garantia de qualidade e satisfação do cliente, e que saiba comunicar as mudanças”.
Ele entende que uma cidade se torna mais eficiente e menos desigual se suas políticas de transportes favorecerem a caminhada, o ciclismo e o transporte público. “O novo paradigma de planejamento urbano não exclui os automóveis, mas limita seu uso à capacidade das metrópoles”, afirma. “São Paulo está dando os primeiros passos com as faixas de ônibus e ciclofaixas. Mudanças mais profundas serão vistas quando esses caminhos forem interligados”, garante.
No entanto, ele critica a qualidade das calçadas da cidade. “O meio de transporte mais fundamental é a caminhada. E na minha curta experiência na cidade, as calçadas são muito ruins. Nesse sentido, a mobilidade de vocês estaria melhor se cadeirantes fossem contratados como fiscais de calçadas”, diz.
O executivo também não vê com bons olhos o rodízio de veículos. “O que geralmente acontece é que as pessoas que podem compram um segundo carro com uma placa diferente. O rodízio é uma medida emergencial. Como uma estratégia de longo prazo é um fracasso”.
Para ele, as novas gerações já têm outra compreensão sobre esse assunto. “Se você perguntar para um adolescente se ele prefere ter um bom computador e um smartphone com um pacote ilimitado de dados ou um carro, eles provavelmente vão escolher o computador e o celular”, acredita.
Por isso, ele entende que favorecendo a qualidade do transporte, investindo em bons pontos de espera, aplicativos que permitam acompanhar o trajeto dos ônibus em tempo real e bons veículos, com ar condicionado e conexão Wi-Fi, a migração do transporte individual para o coletivo será natural. “A mudança mais importante que se pode fazer em São Paulo é tornar atraente para um homem de terno e gravata e uma mulher de saltos altos andar de ônibus”.
No entanto, ele não pensa que as iniciativas devam esperar a melhora da qualidade. Pelo contrário, “É possível e recomendado desenvolver indicadores de qualidade para que se tenha a percepção real do serviço e para que ele possa ser melhorado na medida em que é prestado para a população”, explica.
Exemplos internacionais
Outras metrópoles ao redor do mundo já enfrentaram os problemas que hoje são prioridade na agenda nacional de desenvolvimento. A experiência delas nos mostra que passado o período de implantação de novas políticas, os resultados podem ser muito positivos.
O inglês Nick Lester, presidente da Associação Européia de Estacionamentos, conta que já no começo da década de 70 a cidade de Londres passou a enfrentar uma crise de mobilidade. “Naquela época nós tentávamos resolver o trânsito construindo túneis e viadutos. Passado um curto período, o problema voltava pior. Nós concluímos que não é possível construir o seu caminho para fora de um congestionamento e mudamos a abordagem para um gerenciamento da demanda de transportes”.
A estratégia consistia em desenvolver e apoiar qualquer modelo que fizesse as pessoas usarem menos os carros. Pensando nisso, a cidade passou a exigir que empreendimentos imobiliários tivessem um número mínimo de vagas de estacionamento para tentar tirar os carros das ruas. Foi um fracasso. Encarecia os projetos e na prática não resolvia nada. Eles, então, mudaram radicalmente a abordagem e adotaram a política de estacionamentos máximos. Essa prática levou a uma redução gradual no número de vagas, que resultou em menor uso dos automóveis.
Hoje, há áreas no centro de Londres com apenas uma vaga por 1,5 km². “Isso é virtualmente nenhuma vaga. Com exceção dos veículos de serviços”, diz Nick Lester. Ele explica que, a princípio, os varejistas foram contra as mudanças, porque pensavam que isso iria afastar os compradores. “Mas depois eles perceberam que, na maioria dos casos, as vagas eram usadas pelos funcionários e não pelos clientes”.
Atualmente, as áreas comerciais da cidade priorizam estacionamentos de curto período e entregas. Eles conseguem isso com vagas pagas e preços progressivos. É como se a Zona Azul de São Paulo custasse R$ 5 na primeira hora, R$ 10 na segunda e assim sucessivamente.
Além disso, os londrinos têm um conceito de moradias livres de carros, no qual residentes assinam contratos que estabelecem que eles não possuam automóveis. Para atender a necessidades urgentes, eles desenvolveram clubes do carro, no qual os cidadãos podem alugar veículos a preços acessíveis. “Para cada automóvel disponibilizado nos clubes do carro, nós conseguimos tirar 17 carros de circulação das ruas”, garante Nick Lester.
As políticas de transportes de Londres também enfrentaram resistência de aceitação pública. “As pessoas entendiam que as medidas visavam apenas arrecadar mais dinheiro. O sistema era visto como injusto, porque quem era mais rico simplesmente pagava”. No entanto, no final das contas, o uso do carro no trajeto de casa para o trabalho caiu para menos de 10%.
“As políticas de estacionamento podem ter impacto positivo no uso de carros nas cidades, sem nenhum custo para as prefeituras, mas elas devem fazer parte de uma estratégia mais ampla de transportes”, acredita Nick.
Outros exemplos, mais recentes e mais próximos da realidade brasileira, podem ser vistos em países da América Latina.
De acordo com Andrés Sañudo, coordenador do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), da Cidade do México, a administração atual está apostando nos estacionamentos subterrâneos e no uso de parquímetros em vagas na rua. “A questão com os estacionamentos subterrâneos é o que você vai fazer com as vagas de rua ao redor. Senão não resolve, acaba atraindo mais carros e agrava o problema”, explica.
Buenos Aires também passou por uma profunda reformulação recentemente. Segundo Vera Vicentini, especialista em transportes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ao administrar a oferta de vagas de estacionamento e criar obstáculos físicos para impedir o estacionamento em local proibido, a quantidade de veículos circulando no centro da cidade caiu 70% desde 2012.
Todd Litman, do Canadá, reforça que o estacionamento gratuito é um subsídio do governo que dificulta o avanço das políticas de mobilidade. “As pessoas não gostam de mudanças. Se as pessoas têm um subsídio e isso é tirado, todos pensam que seus direitos estão sendo violados. É preciso insistir e saber comunicar os benefícios, além de investir em alternativas”, diz.
Iniciativas locais
No Brasil, duas iniciativas de políticas de transportes se destacam. A primeira, mais antiga, surgiu em Belo Horizonte, onde uma lei municipal de 2011 antecipou a Política Nacional de Mobilidade Urbana.
A situação na capital mineira era de um crescimento de 110% na frota de veículos em pouco mais de dez anos, versus um crescimento de apenas 6% da população e de menos de 10% na demanda por transporte coletivo.
De acordo com o presidente da BHTrans, Ramon Victor Cesar, as projeções iniciais apontavam que em 2018 o uso do transporte individual ultrapassaria o coletivo. “Isso, na verdade, aconteceu entre o final de 2009 e o início de 2010”, fato que levou o prefeito Marcio Lacerda a dar uma guinada na condução da política de transportes. “O foco hoje é melhorar o transporte público de passageiros, estimular o transporte não motorizado e o uso racional do automóvel”, explica.
Para isso, uma série de medidas aguarda a aprovação da Câmara dos Vereadores, como a mudança da exigência de vagas nos imóveis – ao exemplo de Londres, o conceito de mínimo passa a ser de máximo de vagas –, a proibição do uso de estacionamento como atividade econômica em bem tombado e o tratamento de imóvel subutilizado para lotes vagos que forem usados como estacionamentos.
A cidade de São Paulo também procura avançar na questão e já dá os primeiros sinais de mudança com a aprovação de um Plano Diretor que pretende democratizar o sistema viário e dar prioridade para pedestres, veículos não motorizados e transporte público.
De acordo com o secretário dos Transportes, Jilmar Tatto, 54% das viagens motorizadas da cidade são feitas pelo transporte coletivo. Desse volume, 70% é ônibus, 18% metrô e 12% trem.
A infraestrutura atual de corredores de ônibus tem 130 quilômetros de extensão, e o plano do prefeito Fernando Haddad é fazer outros 150 km antes do fim do mandato. As críticas à iniciativa são muitas. Os motoristas ainda estão se habituando à redução do espaço dos carros e à aparente preferência dos ônibus em horários de pico.
“Olha como é injusto esse debate”, diz Jilmar Tatto, “O carro é o que mais tem espaço no viário da cidade. Ele tem 80% do espaço. Aí você tira 3% e todos reclamam que estão perdendo espaço. Mas os benefícios para os usuários do transporte público são inquestionáveis. A velocidade média dos ônibus nas faixas aumentou 45,7%. Com isso, os usuários – 3 milhões de pessoas! – estão ganhando, na média, 4 horas por semana”, defende.
Na verdade, o foco das críticas da mídia e da população é que as faixas são subutilizadas e estão vazias a maior parte do tempo. “Por enquanto, só tem faixa exclusiva em avenidas com acima de 40 ônibus por hora. Essa ideia de que não tem ônibus na faixa não é verdade. O usuário do carro é que fica desesperado, porque ele fica preso no trânsito e de um em um minuto, ou de 30 em 30 segundos, passa um ônibus no corredor livre do lado dele. Passa tão rápido que ele nem vê”, provoca.
As mesmas críticas miram as ciclofaixas, “atrapalhou o trânsito e ninguém usa”, é comum ouvir. No entanto, o secretário defende que o Plano Nacional de Mobilidade Urbana coloca a bicicleta como modal de transporte. “São Paulo tem 17 mil quilômetros de vias. Tem que ter 17 mil quilômetros de ciclovias. Mas o plano da prefeitura é ter 400 quilômetros nesse primeiro mandato”.
Outro argumento afirma que as ciclovias não são viáveis porque não ligam os bairros ao Centro. Mas ele garante que isso vai mudar. “As ciclovias têm uma lógica, de ir do Centro para as divisas, de se conectar umas às outras e de se conectar aos outros modais de transporte”.
Sobre a política de estacionamentos de rua, o secretário pede calma. “Nós não vamos discutir isso agora. Muitos prefeitos acham que a melhor coisa que eles fazem é uma concessão de parquímetro, mas isso engessa a implementação de soluções para pedestres, bicicletas e transporte coletivo. A cidade está em transformação. A gente chega lá”, afirma.

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