sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Opinião: Dessincronia

Desorganização no trânsito, falta de prioridade ao transporte público e falta de educação dos motoristas são problemas antigos no Brasil, sem avanços significativos para a soluçãoDesorganização no trânsito, falta de prioridade ao transporte público e falta de educação dos motoristas são problemas antigos no Brasil, sem avanços significativos para a solução

O Brasil traz em sua história a marca da dessincronia entre o discurso e a prática, um confronto antigo entre o moderno e o retrógrado. Foi assim no século 19, quando nossa sociedade escravista contrastava com as ideias do liberalismo europeu. Parte de nossas elites propalava o ideário liberal num universo em que predominava escandalosamente a mão de obra escrava.
O jornalista Raul Juste Lores, em artigo para o UOL, mostra como esse descompasso entre o moderno e o atraso permaneceu no terreno da mobilidade urbana. Quando da construção do Minhocão, em novembro de 1969, ele lembra que “Nova York tinha cancelado havia pouco um projeto similar. Elevado cortando área densamente povoada era considerado equívoco”. Mais à frente em seu texto Lores lembra que, quarenta anos depois, o governo do estado de SP repetiria o gesto de privilegiar o automóvel ao investir vultosas somas na construção de novas pistas nas marginais. Enquanto sufocava o já poluído rio Tietê, “Nova York e Madri estavam reduzindo asfalto nessas margens para seus rios respirarem”.
As recentes gestões do governo da União repetiram mais do mesmo, mas ao invés de obras vultosas, preferiram investir na multiplicação dos automóveis, dando bilhões de incentivos à indústria automobilística. Nessa mesma época, até a China (de Xangai a Pequim), diz Lores, já começava “a cobrar taxas pesadas das licenças para motoristas e, assim, tentar reduzir o número de carros nas ruas”.
Pode-se notar que, independente das medidas pró-automóvel, todas elas foram definidas e adotadas por partidos diversos e, aparentemente, de ideários opostos e divergentes. O que nos leva a concluir que quando o assunto é mobilidade urbana, queda evidente que não há partido nem ideologia a apartar os apoiadores do automóvel como prioridade absoluta dos investimentos e das atenções nas ruas e avenidas das cidades. Eles estão todos do mesmo lado.
Basta um rápido olhar nas propostas de muitos candidatos a prefeito de grandes cidades do país para perceber que esta dessincronia, a depender deles, irá perdurar ainda por muitos anos. Aumentar a velocidade, acabar (ou reduzir) as ciclovias, tirar o privilégio dos ônibus na circulação nas ruas da cidade, são medidas que agradam em cheio aos mais ricos (também chamados de “formadores de opinião”), mas não resolvem de forma alguma sua principal queixa, o problema da circulação. Antes de vítimas, eles não conseguem perceber (ou se negam a fazê-lo) que são, na verdade, os principais responsáveis.
Além de agravar os já complexos e perenes problemas da maioria dos que dependem do transporte público para trabalhar, estudar e viver a cidade, a insistência nessa dessincronia torna a cidade mais violenta, menos amigável, mais cara e, por conseguinte, menos competitiva.
O efeito que tal mentalidade produz no imaginário do motorista de automóvel é arrasador, pois passa-lhe a mensagem do “tudo posso”. Essa sensação de soberba ocasiona o desrespeito às faixas de pedestres e aos pedestres de maneira geral (marca registrada de nove entre dez motoristas); justifica o tempo semafórico breve para as travessias (para não atrapalhar “o fluxo”); explica as reclamações constantes e com forte apoio midiático contra a “indústria da multa” (como se o direito de descumprir regras fosse sagrado para quem dirige um automóvel); encurta as calçadas, tornando-as extensão das garagens e do asfalto…
Há inúmeras maneiras de se medir o grau de civilidade de uma cidade. Uma delas, sem dúvida, é o comportamento no trânsito, que utiliza o indicador mais cruel que pode existir: o número de vítimas (mortes e lesões). Tanto melhor e mais civilizada será uma cidade quanto menos mortes e acidentes de trânsito ela apresentar. Não perceber que para tanto é preciso que a cidade tenha menos carros (e menos velozes), boas e largas calçadas acessíveis, mais bicicletas e pessoas andando a pé, é uma prova de ignorância ao que se passa no resto do planeta. Ou de desrespeito ao eleitor.
Alexandre Pelegi, jornalista especializado em transportes e editor da ANTP – Associação Nacional de Transportes Públicos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário