quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Falta uma marca brasileira no setor automotivo


Ronaldo de Breyne Salvagni
Especial para o UOL
Por exemplo, a inovação. Inovação para quê? Novidade pela novidade? Todas as fabricantes já fazem muita inovação, mas fazem isso nos seus países de origem. O governo quer que elas façam isso aqui? Por quê, o que ganhamos com isso? Aparentemente o governo quer promover o desenvolvimento de capacitação técnica e tecnologia brasileiras, com patentes e royalties, e a existência aqui de centros de Pesquisa e Desenvolvimentos, fazendo o país desempenhar um papel importante no cenário da engenharia automotiva mundial.
Este é um dos objetivos da China, e ela está executando seu plano estratégico nessa direção. Mas, no Brasil, estamos fazendo mais uma "jabuticaba" -- aquelas coisas que só existem aqui, não existem em mais nenhum lugar do mundo. Para começar, todas as fabricantes de automóveis no Brasil são estrangeiras, e assim fica difícil falar em "tecnologia nacional", mesmo sendo desenvolvida por brasileiros. As patentes e os royalties continuariam sendo das multinacionais. Se tivéssemos pelo menos uma marca brasileira, de nível mundial, aí sim poderíamos falar em tecnologia nacional, como acontece em alguns outros setores -- vide a Embraer, a Petrobrás, a Vale e algumas poucas mais.
Ainda na inovação, falamos nas fabricantes, mas é importante perceber que o real avanço tecnológico e capacitação técnica não estão nelas, e sim nos seus fornecedores -- os sistemistas e fabricantes de autopeças. É aqui que o novo regime automotivo fica mais misterioso, pois não oferece nenhum incentivo direto a estas empresas, apesar da inovação e tecnologia estarem centradas nelas. Entretanto, esses fabricantes de autopeças são também na grande maioria multinacionais (pelo menos as grandes), o que continuaria prejudicando o conceito de "tecnologia brasileira".
INOVAR É CARO E ARRISCADO
De qualquer forma, o fato fundamental é que a inovação não é um fim em si, ela é apenas um fator estratégico da competitividade das empresas. Inovação exige pesquisa e desenvolvimento, o que é caro e arriscado -- ninguém faz inovação porque quer ou porque gosta, mas porque precisa dela para ter competitividade no cenário global. Se tivéssemos uma fabricante de carros brasileira, ou fabricantes de autopeças/sistemistas brasileiros, forçados a competir no mercado mundial (e não apenas atuando no mercado local, protegidos), a inovação brasileira ocorreria naturalmente, sem precisar de incentivos nem de "regimes".
É o que acontece com a Embraer, a Petrobrás e outras, já citadas. E, não por acaso, é também a estratégia industrial que o Japão e a Coreia do Sul adotaram para o seu desenvolvimento, e é a mesma que a China está adotando agora.
O outro objetivo declarado pelo governo é o de "aumentar a competitividade da indústria nacional", aparentemente se referindo aos produtos fabricados no Brasil face aos fabricados no exterior. Aqui novamente não fica claro se o cenário focado é o mercado local brasileiro, ou se está se falando de exportações para o mercado global.
CUSTO BRASIL É OBSTÁCULO
Para proteger a fabricação nacional no mercado local, a solução simplista para garantir a competitividade dos "nossos produtos", desde sempre adotada por sucessivos governos brasileiros, é a taxação do produto importado. Isto, entretanto, tem sido complicado pela atuação da OMC (Organização Mundial do Comércio) contra o protecionismo comercial, que pode prejudicar a situação do Brasil nas suas relações comerciais com o mundo todo. Assim, a mera taxação dos importados tem sido limitada (às vezes, disfarçada), não chegando a resolver o problema da competitividade do produto nacional.
Já foi amplamente divulgado o fato de que o preço dos automóveis vendidos no Brasil chega a ser de duas a três vezes o preço praticado em outros países. Assim sendo, sem taxação, não há como competir com os importados. Este fato não é nem mencionado, muito menos contemplado, no Inovar-Auto.
Segundo várias fontes, o custo de produção no Brasil é um dos mais baixos do mundo (ponto a favor da competitividade), mas os impostos (mais de 36%, segundo dados da Anfavea, a associação das fabricantes de veículos), o "custo Brasil" de infraestrutura precária e burocracia, e a margem de lucro das empresas (mais de 10% aqui, quando no mundo não passa de 5%), jogam os preços lá para cima. O que viabiliza o mercado de carros no Brasil, a esses preços altíssimos, é o crédito (dezenas de prestações, sem entrada), que é outra "jabuticaba" nossa, não existe nos países desenvolvidos.
E é um mercado aquecido, promissor e lucrativo, não é à toa que o Brasil tem mais fabricantes (mais de 20) do que qualquer outro país do mundo, e mais outras estão chegando aqui para explorar esse mercado.
Em termos da participação brasileira no cenário global, e da relação entre os mercados local e global, é interessante observar alguns números da tabela a seguir, referentes aos anos de 2008 a 2011 e relativos a todo o setor, incluindo veículos e peças. Pode-se notar o efeito da crise de 2008, mas o que claramente chama a atenção é a evolução do saldo da balança comercial, que é reflexo direto da (perda de) competitividade global do produto nacional.
FATURAMENTO E BALANÇA COMERCIAL DO SETOR AUTOMOTIVO
AnoFaturamento líquidoExportaçãoImportaçãoSaldo da balança comercial
(em US$ milhões)
200894.06824.013,621.588,82.424,8
200993.17913.753,517.523,6- 3.770,1
2010105.45520.782,326.653,7- 5.871,4
2011105.37524.282,333.586,3- 9.304,0
  • Fonte: Anuário da Indústria Automobilística Brasileira (2012)
A perda maior tem sido do setor de autopeças. O Sindipeças (que representa as empresas do setor) informa que o faturamento no acumulado de janeiro a setembro de 2012 caiu 15,4% sobre o de igual período de 2011, descontada a inflação. Há risco real de se perder boa parte desse setor com fechamento de empresas nacionais de médio e pequeno porte.
O programa Inovar-Auto tem pontos positivos, sem dúvida, mas não esclarece quais são seus objetivos estratégicos para o país, nem como pretende atingi-los. Ele dá a impressão de apenas adotar algumas medidas cosméticas sem tocar nos problemas principais.
Se o Brasil pretende fazer seu Setor Automotivo ocupar um espaço importante no cenário mundial, e deixarmos de ser apenas um mercado grande e atraente para ser explorado por empresas de outros países, dois conjuntos de ações parecem ser indispensáveis:
- Reduzir a excessiva carga fiscal e o "custo Brasil";
- Incentivar e apoiar empresas brasileiras (não estatais) para competir (e vencer) no cenário global -- de nada adianta ficarem protegidas no mercado local.
Se não for assim, é melhor nos conformamos em ficarmos por aqui comprando carros caríssimos, em suaves prestações, cheios de novidades e enfeites, fabricados aqui, mas concebidos com a tecnologia e capacitação técnica de outros países.
Ronaldo de Breyne Salvagni, engenheiro naval, é professor titular e coordenador do Centro de Engenharia Automotiva da Escola Politécnica da USP

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